Pop Dell'Arte - Sex Symbol
1995. O país político despe a cinta do cavaquismo e o país pop está sob o efeito anestesiante de Viagens. São um só com as mesmas necessidades: cor, luz, brilho, auto-estima e mundo. É um ano fértil de um centro de década particularmente feliz para a música portuguesa. Saem Dou-lhe com a Alma dos Da Weasel (gravado nos interstícips de Sex Symbol), Nascer do Soul dos Cool Hipnoise, o homónimo dos Blackout, 0670 dos DR Sax, Tá-se Bem dos Kussondulola, Flowers and The Colour of Pain dos Ithaka, Pé Na Tchôn, Karapinha Na Céu de General D & Os Karapinhas e Totally Kaos 2 - The Sound Of Portugal, a amostra de um paraíso (electrónico) chamado Portugal. Todos representam a chegada de novos ventos. Do rap, do jazz, da soul, do funk, do disco, do reggae, do house e do techno - as bíblias negras rítmicas e espirituais.
É o país a abrir os seus canais através da produção musical, sinalizada por fenómenos transversais como os de Pedro Abrunhosa ou subterrâneos como o de So Get Up, dos Underground Sound of Lisbon, de DJ Vibe e Rui da Silva. Acontecimentos como a Lisboa Capital Europeia da Cultura ‘94 servem de luzes de presença para a cidade e de ensaio para a Expo 98. É uma boa colheita a de 95. O Homem do Leme resgata os Xutos & Pontapés Ao Vivo Na Antena 3, Mão Morta Revisitada regrava as primeiras fitas dos bracarenses; Invasōes Bárbaras dos Gaiteiros de Lisboa é tradição para além da tradição.
Sex Symbol dos Pop Dell’Arte é um caso à parte, como era Free Pop em 1987. A grande diferença? Os anos 80 são fundadores em muitas áreas, da música à publicidade, à televisão. Para uma banda com lastro de uma década, é mais difícil provar que todas as hipóteses ainda estão em aberto. E tal como refere o baixista Zé Pedro Moura, “transferido” dos Pop Dell’Arte para os Mão Morta onde passa toda a década de 90, no primeiro testemunho do documentário Ainda Tenho Um Sonho ou Dois, “Lisboa de 80 a 89 é uma cidade bem diferente”. Durante esse período, diz, “há uma modificação gigante”.
Nos anos 90, consolidam-se experiências mas os Pop Dell’Arte ainda guardam um sonho ou dois. Onze no caso de Sex Symbol, aclamado pela influente crítica da época, onde chega a Dezembro no primeiro lugar do pelotão no Diário de Notícias que lhe atribui o título de Álbum do Ano. Blitz e Público também o incluem entre os melhores. A imensa minoria da XFM e os jovens turcos da Antena 3 dão-lhe a atenção devida. Vão ao Big Show SIC fazer um playback de editora (Sex Symbol foi editado pela multinacional Polygram) e Poppa Mundi é escolhido para o genérico do magazine social da RTP Jet Set. Fora isso, é a utopia possível ou seja o marasmo. A ideia era firmá-los no circuito regular da indústria mas “não foi possível”, comentava o então agente Paulo Salgado, baixista ainda no leito da formação e membro posterior dos Essa Entente - grupo que participa na história colectânea Divergências, editada pela Ama Romanta de João Peste em 1986.
Antes de qualquer outra racionalização, os Pop Dell’Arte são uma fantasia pop espiada na mente do vocalista, ideólogo, sabotador e resistente. Porque pop e arte só descrevem a generalidade. A particularidade é um caleidoscópio de referências, citaçōes e alusōes. Um livre trânsito sequioso de novidade, capaz de filtrar o intemporal na digestão. Só uma palavra define a imensidão do oceano dos Pop Dell’Arte: l-i-b-e-r-d-a-d-e. Desvirginar Sex Symbol é lidar com um rodopio de figurinos e, no final, ser sempre a mesma personagem. Música impossível para os padrōes correntes de organização da informação, libertária e anarca no pleno uso das possibilidades. Excessiva, visitante regular de caves proibidas mas impossível de cancelar. Pelo menos, naquela altura.
Seria permitido escrever “sábado à noite à procura de pó/é tudo tão frágil e eu estou tão só” e receber via verde nas portagens da moral? Provavelmente não, mas a natureza de João Peste sempre foi o desvio e não a norma. A ética do direito à diferença, conquistada no clássico dos tempos modernos Free Pop e prorrogada nos episódios posteriores, importantes para compreender os Pop Dell’Arte enquanto laboratório de experiências sónicas e transgressōes sensoriais, guiadas por uma luz pop vanguardista muito inspirada pelo visionarismo inabalável de David Bowie.
Depois de Free Pop, obra maior de deriva pop a par de Coisas que Fascinam dos Mler Ife Dada, o EP Illogik Plastik, de O Amor é um Gajo Estranho, trouxe novas ficçōes e atracçōes como o exercício de corte e costura da visionária canção titular. Desiludido, João Peste dissolveu o grupo, inventou o Acidoxi Bordel e fugiu para Inglaterra em plena revolução acid rave. Quando regressa a Portugal, reata os Pop Dell’Arte. O 12’’ 2002/MC Holy (este com General D) reflectem a exposição à cultura acid house e a novos rumos da electrónica mas o cosmos continua em movimento. De 93, Ready Made (a estética do fazer de Duchamp) tanto lhes junta as liberdades jazzísticas de Janis Pearl, como os devaneios sónicos de Green Lantern (Is On The Road Again) e o rio místico de The Ballad Of Lilli-Yo. É o prológo de um futuro em actualização.
Em Sex Symbol, a única lógica é a falta dela. Nem todas as cançōes se podem pôr por palavras. No vínculo entre programaçōes, bateria e guitarra de All You Need Is Money, o sarcasmo Warholiano do refrão (“All you need is money honey”) coexiste com o “Whole Lotta Love” gamado aos Led Zeppelin. My Funny Ana Lana, o single e vídeo, é glam sofisticado com riff à T-Rex. O cheiro a sexo e drogas tresanda mas os Pop Dell’Arte também sabem desacelerar. Planet Lakroon mergulha na praia de Neil Young, onde hoje Kurt Vile estende a toalha. A quarta é metida com Zip Zap Woman, uma das mais amistosas e orelhudas, e a quinta com The Orange Kaleidoscope, rock sónico e ruídoso de veia Sonic Youth, treinado com êxito em Green Lantern (Is On The Road Again).
Tudo é uma segunda-mão pintada de fresco. Mudam-se os tempos, alteram-se as formaçōes, subsiste a filosofia. Com João Peste está Luis San-Payo nas baquetas, timoneiro da casa das máquinas e compositar maioritário. Pedro Alvim (ex-Linha Geral, já falecido) é o baixista nesta fase. Paulo Monteiro, até hoje membro (ex-Croix Sante), é o guitarrista, e logo a seguir entra João Paulo Simōes (ex-M’As Foice), o mesmo JP Simōes dos Belle Chase Hotel, do Quinteto Tati e de 1970, também para a guitarra. Ricardo Camacho (Sétima Legião, já falecido) aquece My Funny Lana com o Hammond, onde também participa a cantora Maimuna Jales. O produtor Amândio Bastos tem um loop em All You Need Is Money, que Sei Miguel abrilhanta com as notas xamånicas do trompete.
Moon In Your Room é João Peste ao espelho a fazer de Sinatra; A Sex Machine (With Hands To Kill) evoca o minimalismo claustrofóbico dos Suicide. Ragga Mecca Mix éo quê? É ragga adulterado e pestilento. Bela e esquecida, H2T é deep house circular da melhor safra de Frankie Knuckles. Be Bop é jazz em nuvem de fumo algures no velho Bairro Alto do Frágil e, para o grande final, Poppa Mundi é uma valsinha deliciosa, apenas para voz e concertina.
Depois do regresso de Inglaterra, a existência dos Pop Dell’Arte passou a ser errática. Sex Symbol, por exemplo, esteve nove meses no forno à espera de ser misturado, mas valeu sempre a pena esperar pela elogio da volúpia de Joåo Peste. Que num país a correr atrás do tempo, tenham caído do céu asteróides como Sex Symbol só não é um milagre porque o pecado foi uma doutrina inventada pela religião para designar tudo o que transgride.
Sex Symbol foi editado em 1995 pela Polygram e vendeu umas generosas três mil cópias para a época. Foi reeditado em vinil em 2016, com direito a concerto no Titanic Sur Mer. O CD está descatalogado e vale dinheiro no Discogs. Os Pop Dell’Arte dão um concerto este sábado no Bourbon Room no Porto