Ithaka - Flowers and the Colour of Paint
Uma primeira pesquisa por Flowers and the Colour of Paint de Ithaka, a entidade criada pelo californiano de costela grega Darin Pappas, leva-nos até uma muito completa página de Wikipedia do álbum, com todo o ar de ter sido editada pelo próprio. Coisa rara quando se trata da arqueologia da música portuguesa - o Discogs é quase sempre o acervo mais generoso. Não chega para atestar a retroactividade mas é um flanco aberto, com factos e outras informaçōes úteis para o contexto e relação.
Flowers and the Colour of Paint não chega a ser uma obscuridade, mas no mínimo está esquecido. Na história do hip-hop português, a segunda geração (Sam The Kid, Valete, Chullage, Cruzfader, Bomberjack, NBC, Dealema) é a mais influente, quer pela longevidade das figuras e influência de algumas obras (como Beats Vol. 1 e Pratica(mente) de Sam The Kid, ou a cultura de mixtapes dos DJ citados), mas também e principalmente por ter imposto o rap como uma embaixada do quotidiano, séria, credível e poética, beneficiando quer da coragem de pioneiros como General D e os Black Company, quer da capacidade de rimar contra a maré de figuras como Boss AC ou os Mind Da Gap, que asseguraram a transição entre a primeira água da Rapública e a segunda vaga citada.
Além disso, a primeira estação, em meados dos anos 90 faz-se de modelos híbridos, como Da Weasel ou Cool Hipnoise, nem sempre compreendidos ou aceites pela ortodoxia da comunidade. Bandas que se moviam em águas como o rock ou o jazz - correntes onde o rap sempre se banhou mas com as quais foi perdendo contacto enquanto se fechava sobre si mesmo à medida que furava a pedra. É neste grupo de “música de fusão”, como era usual dizer-se, que surge Flowers and the Colour of Paint, uma sociedade entre o letrista, narrador e artista plástico Darin Pappas, chegado a Portugal em 1992 onde permaneceria durante seis anos, e o coleccionador de discos e produtor Pedro Passos (responsável por samples, loops), mais tarde ligado ao círculo electrónico de editoras como a Nylon e a Lupeca.
A palavra é o guia espiritual de Darin Pappas, nato contador de aventuras pessoais (sobretudo de Los Angeles, onde chegou a fotografar os NWA) de voz funda. A mesma com que escreveu e gravou os famosos versos de So Get Up (The End of the Earth Is Upon Us…) para o clássico dos Underground Sound of Lisbon, de DJ Vibe e Rui da Silva.
Em Ithaka, o hip-hop é uma consequência da poesia autobiográfica, falada e rappada, e uma casa aberta a convidados. Quando o surfista aterrou em Lisboa, fixou-se no Bairro Alto, apanhou as ondas da Caparica e relacionou-se com os Da Weasel e Cool Hipnoise. Estes últimos ainda eram um embrião quando Darin Pappas mostrou as primeiras maquetas, mas são determinantes para o diálogo entre o sample e o analógico. O funk de Tiago Santos (guitarra), João Gomes (teclados), Francisco Rebelo (baixo), Nuno Reis (trompete) e Paulo Muiños (saxofone), ou seja os Cool Hipnoise, é mem’bom e faz de Flowers and the Colour of Paint um disco tão próximo de Dou-lhe com a Alma, dos Da Weasel, como de Viagens, de Pedro Abrunhosa. Ouça-se a soberba Escape From the City of Angels, com segunda voz da goesa Marta Dias, irmã de Lynce, o passageiro de The Umbilibus, para compreender e decifrar todas estas ligaçōes. E reconhecer referências da daisy age (De La Soul, A Tribe Called Quest), mas também de avançados ingleses como os Stereo MCs.
As ligaçōes multiplicam-se ao longo disco. A guitarra noise de João Paulo Feliciano, músico então dos Tina and The Top Ten e artista plástico, transmite uma plasticidade rugosa e até claustrofóbica, a Somewhere South of Gibraltar, na esteira de outras experiências entre o rap e o rock, como Bring The Noise dos Public Enemy com os Anthrax. Flowers and the Colour of Paint é seco nas bases instrumentais, mas extremamente rico na construção. Cançōes como Fishdaddy podiam estar em 3 Feet High and Rising, dos De La Soul, enquanto Been Four Years, teria lugar em The Low End Theory dos A Tribe Called Quest. Stonemobile tem um baixo digno de Sly Stone. E há a grave e sufocante Erase The Slate of Hate, co-tripulada com General D, a deixar uma lição: every year of hate takes 25 to evaporate.
Flowers and the Colour of Paint foi um caso de crítica num ano de grande fertilidade da música portuguesa (Dou-lhe com a Alma, dos Da Weasel, Nascer do Soul, dos Cool Hipnoise, Sex Symbol dos Pop Dell’Arte, ou Invasōes Bárbaras dos Gaiteiros de Lisboa). Esteve nomeado para os prémios Blitz e plantou a semente para o segundo capítulo de Ithaka: Stellafly, de 1997, do qual saiu a insana Seabra Is Mad, dedicada ao surfista José Seabra. E foi aí que Ithaka chegou aos palcos, mas a aventura foi breve. E Darin Pappas retomou o nomadismo, sem nunca ter esquecido um pequeno paraíso onde a música projectou personagem sem paralelo.
Flowers and the Colour of Paint foi produzido pelo inglês Joe Fossard editado em 1995 pela Fábrica de Sons, casa de álbuns de Telectu, Jorge Lima Barreto e Sei Miguel. Pode ser ouvido nas plataformas digitais, incluindo no YouTube, onde podem também ser encontrados os vídeos de Stay Strong Little Brother e de Stonemobile