Da Weasel - Dou-lhe com a Alma
Como explicar a reacção tão avassaladora ao regresso dos Da Weasel? Simples. Ao contrário da maioria das histórias, esta não terminou em decadência. E ainda que o auge de popularidade talvez já tivesse sido atingido no ciclo de Re-Definiçōes, deixaram bastante por dizer e fazer. O ciclo não se tinha fechado.
O que também se pode justificar por não haver filho de um Deus menor na obra dos Da Weasel. Há, sim, polaroids de períodos distintos. E diferentes geraçōes a segui-los, à medida que foram chegando. O pré-Tás na Boa. O pós-Retratamento. O reconhecimento da comunidade hip-hop pela negritude de 3º Capítulo. A transição entre décadas e públicos de Iniciação a uma Vida Banal - O Manual. E há Dou-lhe com Alma, a primeira saída prolongada da toca da doninha depois de escavarem o futuro com o EP More Than 30 Motherf***s, ainda em inglês, em 1994.
O contexto é essencial para se compreender a descolagem de uma banda de rock com rimas. No ano anterior, Rapública e, em particular, o epifenómeno Nadar, deram a conhecer uma coisa esquisita e palavrosa chamada rap ao país. Na prática, a reacção ao êxito dos Black Company foi muito mais lúdica e física, como um Pump Up The Jam, do que séria ou reflexiva, como um The Message ou um Fight The Power. Em paralelo, Pedro Abrunhosa usava, via Prince, o hip-hop como uma das matérias-primas essenciais de Viagens. E Gabriel O Pensador era um irmão do meio, fundamental para a compreensão do rap, através do manejamento da palavra para concretizar a poesia.
Depois havia precedentes próprios. Os Da Weasel nascem no quarto dos irmãos Nobre, quando Jay, o líder conceptual do grupo, era guitarrista dos Braindead - banda que viajara desde as cavidades da cultura thrash até um caldo de rock, funk, metal e rap, na peugada de Red Hot Chili Peppers, Faith No More, Metallica, Public Enemy ou Bad Brains. Pac tocava baixo, servia de roadie em concertos e, simbolicamente, participou naquela que seria a derradeira canção de Room Landscapes, o álbum de despedida dos Braindead em 94. Pedro Quaresma, o guitarra, vinha do puro funk dos conterrâneos Lesma. Guilherme Silva fora um dos vários bateristas dos Braindead. Armando Teixeira era a casa das máquinas dos Bizarra Locomotiva, uma espécie de emanação dos Young Gods, com dias de raiva à Nine Inch Nails. E Yen Sung, já DJ na época, era a voz serena e adoçante da poesia inquieta e, por vezes, ácida, de Pacman - seria, aliás, o único registo com as doninhas antes de se dedicar em definito a outras madrugadas.
E, não menos importante, a geografia. Almada. Cacilhas. Um dormitório com vida própria. Uma cidade de classe média com histórico de resistência e sangue de esquerda. Multicultural, antes de se falar de multiculturalismo. E os Da Weasel representavam-no. “Nasci em Angola, tenho mãe cabo-verdiana/Sempre vivi em terra lusitana/Três culturas que não vou separar/Todas têm muito para me ensinar/Prefiro antes fazer uma fusão/Porque a força vem da união”, expunha Pacman em Educação é Liberdade.
Antes de mais, a “inclusão” chegava através da música e não da melanina. Da profusão de estirpes a habitar o corpo sonoro dos Da Weasel e que tornavam irrelevante a definição de género. Rock? Rap? Onde encaixar o hardcore de Dou-lhe com a Alma? O reggae de Essa Vida? E o funk de Right On? Pouco importava, embora o estar sem nunca pertencer a uma tribo específica não fosse tão pacífico como a consagração posterior sugere. Os Da Weasel afirmavam uma personalidade e embora não estivessem sós no mapa - eram frequentes as comparaçōes com os Cool Hipnoise e apostas da indústria sobre quem chegaria mais longe -, marcavam pela diferença.
Desde logo, pela lucidez, inteligência e habilidade de um Pacman a escrever a tinta permanente aos vinte anos. A voz ingénua era um detalhe. Ficavam-lhe bem a inocência (“ninguém vai tosquiar o meu engenho”), ambição (“tentando dar um abanão em Portugal”) e honestidade (“Só tento transmitir o meu ponto de vista/Um pouco intimista sempre realista/Porque as minhas histórias são vividas por mim/E é pena que nem toda a gente seja assim), mas seria injusto reduzir os Da Weasel ao seu principal interlocutor quando havia uma irmandade e uma amizade. Aparte as ligaçōes de sangue, as afinidades musicais e humanas juntaram os seis - nos meses seguintes, Virgul haveria de entrar para ser um hype man.
Gravado nos intervalos do aclamado Sex Symbol, dos Pop Dell’Arte, por Amândio Bastos, o álbum que revelou os Da Weasel em definitivo partiu de uma auto-descoberta: a do português enquanto chave-mestra da poesia autobiográfica. Com violência interior à mistura. “Acordas todo santo dia a ressacar/Sempre a pensar como é que te vais orientar/Ainda ontem tinhas tudo na mão/Mas nunca chega pois não meu irmão? (..) Estou a tentar chegar a ti/Antes que te tornes em algo que já vi/Tantas e tantas vezes na minha vida/Ainda não estou pronto para a despedida”, confessava Pacman em Ressaca.
O que podia ser um problema na alvorada de 94 quando se estrearam com o primeiro EP, era solução definitiva ano e meio depois à chegada de Dou-lhe com a Alma. E nem a icónica God Bless Johnny, regravada para o álbum e eternizada em concerto, pela catarse, podia alterar as páginas seguintes da história.
A haver uma imagem que defina os Da Weasel, anda à volta da ideia de ponte. Ou ligação. Se More Than 30 Motherf***s é o buzinão no trânsito do Centro Sul, Dou-lhe com a Alma é a portagem de uma banda periféria que haveria de conquistar o país. O antes e o depois de uma vida nada banal. E o melhor grupo de cançōes de uma obra sem percalços.
Dou-lhe com a Alma foi editado em 1995 pela Dínamo de Manuel Faria e não está disponível nas plataformas de streaming mas pode ser ouvido aqui. O CD está a chegar aos 55 euros no Discogs