Sam The Kid - Pratica(mente)
É por casos como os de Pratica(mente) que se fizeram os carris do Retropolitano. A memória da música portuguesa é difusa e dispersa. Se há períodos sobejamente dissecados em páginas de jornais, livros ou documentários, como o da revolução de abril ou a década de 80 (desde o boom do rock até à música moderna portuguesa do Rock Rendez-Vous), há outros inalcançáveis aos motores de busca. Há dúvidas que hoje a Internet é o primeiro guardião dessa informação preciosa não apenas sobre o Portugal musical mas sobre o país?
Porque antes de mais, a música é o retrato em movimento dessa babilónia de identidades e personalidades que fazem dela uma peça-chave para nos reconhecermos enquanto povo. Pratica(mente) até tem um artigo de Wikipedia anormalmente completo, mas se abrirmos as fontes citadas, deparamo-nos com páginas mortas ou desformatadas - conteúdo valioso a necessitar de organização urgente. Tarefa que o a auto-consciência do próprio Sam The Kid resolveu em boa parte no episódio de Vamos por Partes dedicado a Pratica(mente). Embora o álbum seja auto-suficiente a falar por si mesmo, uma coisa é ouvi-lo em doses de vício, outra é compreendê-lo na sua extensão. E quase uma maioridade depois de ter chegado a 8 de dezembro de 2006, a tempo de ser aclamado como o álbum português desse ano e projectado como o melhor da história ainda recente do hip-hop nacional, continua a ser um clássico instantâneo. Uma força da natureza de um produtor cheio de fome de palavras e sede de sons que pudessem deixar rasto. E servir de máximo pessoal para elevar o movimento.
As sondagens estavam certas. Pratica(mente) é uma das muitas razōes de ser do Retropolitano porque a história da música portuguesa deste século, o tempo da digitalização, já tem maturidade suficiente para ser observada na sua importância histórica, sem apertos saudosistas. À procura da perfeita repetição, Sam The Kid levou quatro anos a concluir a sua Gioconda. Valeu a pena esperar pela “hora da verdade”, como lhe chamou no vídeo recapitulativo publicado na rúbrica da TV Chelas. Fê-lo em nome de uma pesquisa intensa em discos esquecidos, sobretudo de música portuguesa da década de 70, e de madrugadas sem pregar olho. Longos dias passaram durante os 48 meses se separação entre o soberbo Beats Vol. 1, uma explosão instrumental de amor, e Pratica(mente).
Horas alimentadas por uma insatisfação permanente e uma dúvida constante. Seria capaz de entregar um álbum à altura dos grandes clássicos, como o ainda fresco e referencial Late Registration, de Kanye West? Quatro intermináveis anos são uma ninharia se comparados com o impacto cultural e grandeza de Pratica(mente). Chamar-lhe álbum é redutor para a dimensão histórica alcançada. Porque Pratica(mente) não fixou apenas um novo máximo no hip-hop português. Angariou novos clientes para a causa, e chamou tantos outros desconfiados, por via do gosto ou do preconceito, para a riqueza poética e musical do rap. Mas isso, claro, só foi possível por se tratar de um objecto superior pensado em todas as dimensōes musicais e visuais. Sam o poeta, produtor e realizador.
Chelas sempre foi o sítio de Samuel Mira mas pela primeira vez, o quarto mágico não foi o aposento escolhido para a gravação. Pratica(mente) passou pelos estúdios Indigo, de Manuel Faria (histórico dos Trovante e da música para publicidade e cinema, que chegou a ter a Dínamo, por quem os Da Weasel editaram Dou-lhe em Alma, e que gravou o piano para a introdução de Viriato Ventura, o heterónimo de Napoleão Mira, pai de Samuel), pela Enchufada (onde Lil’John dos Buraka Som Sistema assumiu um papel à Jon Brion em Late Registration) e pela Meifumado de Zé Nando Pimenta (irmão de PZ também conhecido na época por Type).
“Há aqui outro nível. Fui à procura dos instrumentos para colocar na música. Mesmo assim, os meus drums estão sempre lá”, contava em entrevista à revista Sexta do Diário de Notícias. Sam The Kid referia-se à memorável linha de contrabaixo, digna de Charles Mingus, tocada por Carlos Bica em À Procura da Perfeita Repetição, e ao suporte instrumental dos Cool Hipnoise em Retrospectiva de um Amor Profundo. A banda acompanhá-lo-ia na estrada com Fred Ferreira na bateria, DJ Cruzfader nos pratos, e Elaisa, nas vozes. Seria o óvulo dos Orelha Negra.
Como arquivista nato, Sam The Kid era um caçador de informação, e como melhor cenógrafo, usava essas recolhas para construir quadros narrativos. É nesse contexto de que surgem as declarações de António Pinho Vargas (em À Procura da Perfeita Repetição), Carlos Vaz Marques (em Juventude é Mentalidade) e José Saramago (em Poetas de Karaoke). Esse exercício meticuloso de corte e colagem, uma das técnicas matriciais da cultura, foi uma das razōes para o tardar da entrega do álbum à editora.
Imediatamente se percebeu que se tratava de um acontecimento. O vídeo de Poetas de Karaoke é testemunha ocular. A invasão simulada aos estúdios da Antena 3 anuncia o imprevisto. Ali estava alguém não apenas a cumprir calendário editorial decretado por contrato, mas uma figura com vontade e capacidade de chegar, ocupar e marcar uma posição. E, à sua medida, corrigir algumas regras de um jogo inclinado por preconceitos face ao hip-hop e à língua portuguesa.
O vídeo de Rui de Brito é todo ele provocatório. Começa por anunciar factos verídicos. Reproduz uma emissão da SIC, conduzida pelo jornalista Pedro Mourinho. Nos corredores da rádio, Samuel Mira lidera um “arrastão” onde se reconhecem Xeg, Cruzfader ou GQ. Nas escadas, avança um assalto armado. No exterior, um grupo de apoiantes chama por Sam The Kid. E rostos conhecidos como Zé Pedro, Pacman, Rui Veloso Lil’John e NBC testemunham a favor da operação. José Mariño, da Antena 3, é um aliado interno. Gomo, um dos embaixadores da “pop importada”, e aposta da MTV local para representar a música portuguesa no exterior, é deliciosamente usado como objector.
A ficção é tão real que muita gente se interrogou se de facto não teria mesmo acontecido. Graças a esta ambiguidade, Poetas de Karaoke chegou aos telejornais e é ainda hoje um dos mais iconográficos da história do vídeo musical em Portugal. O que também se lia nas entrelinhas da narrativa era a confrontação do instituído assumida por Sam The Kid e o desassombro na defesa de um discurso próprio.
“O que é, por vezes, não existe, mas sim aquilo que se pressente”, diz o pai na introdução de abertura. Pratica(mente) é todo ele declarativo, como se tivesse escrito um conjunto de manifestos urgentes sobre experiências individuais de alcance colectivo. Mas esse efeito de partilha, ainda hoje, só foi possível pela escrita de Sam The Kid ser tão ágil e certeira como Cristiano Ronaldo a tirar adversários do caminho e a rematar à baliza.
O instinto é de matador. A rima é parte da dinâmica sonora e o instrumental serve a poesia. O diálogo é empolgante. Todo o texto é justificado. Não há palavra sem significado ou som desnecessário. Pratica(mente) é uma obra minuciosa de um realizador sonoro, preocupado com cada detalhe. É Samuel, o pensador, a escrever para todos e não só para MCs.
A verosimilhança do hip-hop define-se pela capacidade do MC em transformar a autobiografia numa história. Em Pratica(mente), Sam The Kid é exímio a transportar fantasias, obsessōes e discordâncias para o papel. É alguém a preencher páginas em branco do hip-hop português a tinta permanente, como o tempo só evidenciou. “Nunca precisei de ouvir hip-hop tuga para o fazer”, declara em Poetas de Karaoke. O recado tem como destinatário a desculpa do inglês, mas é, por outro lado, o reconhecimento do rap enquanto bíblia poética do Séc. XXI. Sam The Kid já sabia o que muita gente haveria de descobrir mais tarde: que para muitos miúdos, o rap são os livros de português, as palavras uma bola de futebol e as sílabas as fintas.
“Se o hip-hop português está em alta [n.d.r. Da Weasel e Boss AC tinham acabado de ser fenómenos de venda, enquanto Valete já era bastante “traficado” em MP3]. Vamos aos liceus e os papéis inverteram-se. Antes os que ouviam hip-hop eram uma minoria. Agora são os que ouvem rock. Tanto que existe a expressão hip-hop tuga.” Isto era Sam The Kid ao DN em 2006 a ser tão 2023. A visão estava lá e estava certa. Já os “novos horizontes” dos Moonspell não eram uma indirecta. “Eles são um bom exemplo porque conseguiram singrar lá fora. Critico aqueles que começam e querem ir logo lá para fora”, comentava na entrevista.
Em Pratica(mente), Sam The Kid não é menos que Fernando Pessoa ou José Saramago. Os jogos fonéticos são matemática aplicada de uma destreza e precisão memoráveis. É fácil pegar no glossário do álbum e inventar um puzzle autónomo, como um exercício de remisturas das palavras. É um álbum galvanizador que fez estragos. O rap era a percentagem não mostrada da sondagem mas depois de Pratica(mente) o jogo mudou. Podemos começar por Slow J - “é triste que saia a lista dos 200 melhores álbuns de hiphop da Rolling Stone e nós nem temos a mínima expectativa de encontrar lá o Praticamente do Sam” - e descer por esse rio acima. Dos cabecilhas do hip-hop português, quantos não estudaram por este manual?
Estava tudo escrito em Juventude (é mentalidade). “Juventude mostrem a coragem/Façam o futuro à vossa imagem/Porque a censura faz homenagem/Como quer, quando quer, como quer”. A luta de Sam The Kid era por amor. Ao hip-hop e à música portuguesa enquanto terreno fértil de memória e reconstrução, tal e qual nos EUA a soul, o funk, o jazz ou o rock psicadélico eram a biblioteca favorita dos produtores. Victor Espadinha não percebeu e Sam respondeu-lhe de forma brilhante em À Procura da Perfeita Repetição. Na altura foi um caso, hoje é um rodapé.
Porque essa e todas as outras homenagens prestadas, resultavam apenas da Retrospectiva de um Amor Profundo (escute-se a nu-soul soulquariana com cauda de sereia). O “Não sou Casanova, prefiro ter uma casa nova” de Pus-me a Pensar era o “Não quero uma boa vida, quero uma vida boa” de Slow J, mais de dez anos depois em Vida Boa. Uma família alargada estava para nascer, tinha em Sam The Kid o pratiarca e em Pratica(mente) a punchline, sem subestimar a importância de Entre(tanto), Sobre(tudo) e Beats Vol. 1.
Escreveu-se torto por linhas direitas. Pratica(mente) foi pensado ao detalhe mas a racionalidade não lhe roubou o instinto de quem faz por que quer e sente. Foi uma pedrada no charco, um sismo à escala do país, maior do que o hip-hop ou até do que a música portuguesa como um todo. O impacto ainda é esmagador.
Pratica(mente) foi editado em dezembro de 2006 pela Edel. Foi aclamado pela crítica e considerado Álbum do Ano no Diário de Notícias, repetindo o feito de Beats Vol. 1 em 2002. Alcançou o Disco de Ouro por vendas superiores a 10 mil unidades. Em 2008, foi reeditado com um segundo disco, baptizado de Flawless Radio, em forma de mixtape de perdidos e achados com inéditos, maquetas e remisturas. Em 2022, a edição simples foi reeditada pela TV Chelas do próprio Samuel. A versão Flawless Radio, há muito indisponível, é muito disputada entre coleccionadores