Os primeiros ensaios dos Madredeus remontam a 1986. Nessa altura, o plural representava apenas os fundadores Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão. Nos intervalos dos Heróis do Mar e dos Sétima Legião, bandas às quais estavam ligados, nascia uma outra vontade de partir, embora com alguns ideais comuns. Continuar a enaltecer a cultura portuguesa sem electricidade a correr pelo corpo. Nas pausas dos Heróis, Ayres Magalhães pousava as quatro cordas do baixo e exercitava a guitarra clássica. Tinha encontrado em Rodrigo Leão, também baixista nos Sétima Legião (banda que assinara para a Fundação Atlântica), um parceiro à altura para discutir e compreender a “poesia portuguesa naquilo que ela tem de mais universal e peculiar”, observava nas páginas de Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa, editado pelo Público com a FNAC, sobre o álbum. Ou seja, país e mundo. Sonho e epopeia.
Navegavam o fado, a poesia e a saudade sem atracarem na literalidade. O conceito amadurecia desde o ano anterior, sem pressa nem prioridade, porque as agendas de ambos os grupos eram intensas, mas a fecundidade de Ayres Magalhães, manifestada desde os Faíscas e os Corpo Diplomático, e então ao serviço dos Heróis, ainda não tinha chegado ao mar. Pelo contrário, a grande aventura mal começara. Faltava-lhes uma voz feminina para acabar a casa onde também já tinham tecto o violoncelista Francisco Ribeiro e o Gabriel Gomes, pouco tempo antes integrado nos Sétima Legião de quem era cúmplice de cafés em Alvalade. Numa saída nocturna, o acordeonista e Rodrigo Leão descobriram a adolescente Teresa Salgueiro quando esta cantava com um grupo de amigos numa mesa ao lado de uma tasca do Bairro Alto e convidaram-na para uma audição.
“A audição decorreu no estúdio de Paulo Abelho, integrante da Sétima Legião e foi-lhe pedido que cantasse três canções – uma com letra de Pedro Ayres (Fado do Mindelo), outra do poeta decadentista Gomes Leal (Cantiga do Campo) e a última de David Mourão-Ferreira (A Sombra, cantada por Amália e incluída no filme de Joaquim Leitão)”, conta-se num texto do Blitz sobre A Vaca de Fogo. O filme era Duma Vez por Todas, de Joaquim Leitão, que tinha como improvável protagonista Ayres Magalhães. Ao pousar em Lisboa no regresso de uma viagem promocional ao Brasil, Rodrigo Leão e Gabriel Gomes fizeram questão de lhe introduzir a voz de Teresa Salgueiro num walkman. A Sombra, dedicada no álbum à memória de António Variaçōes, era o exame definitivo de aferição devido “ao texto tão sinistro e melancólico quanto o título, um texto que despertava rumores antigos com as suas referências às ruas de outrora, ao cais e a um cantar distante”, descrevia a biografia Madredeus Um Futuro Maior, escrita por Jorge Pires. À 14ª tentativa, estava encontrada a musa inspiradora.
“Já existiam algumas cançōes, mas o repertório dos Madredeus deve ser visto sob essa luz, a de que foi composto para explorar ao máximo as características dramáticas e musicais da sua voz. Para que ela cantasse as letras com credibilidade e adequação”, lembrava Ayres Magalhães no livro do Público. Convictos de terem avistado um farol, não só ensaiam como discutem a ideia com amigos ao longo dos meses. Primeiro numa pequena sala de ensaios e depois, por sugestão do técnico de som e cúmplice Amândio Bastos, no antigo convento de Xabregas, então ocupado pelo Teatro Ibérico. Ainda não têm nome mas a resposta está no bairro vizinho onde os eléctricos circulam: Madredeus.
Ao longo desse estágio, desvelam-se. Miguel Esteves Cardoso e Manuel Falcão correm a passar o entusiasmo para a tinta dos jornais. Edgar Pêra começa a registar os primeiros dias da Madredeus e grava cinco vídeos. A EMI/Valentim de Carvalho encanta-se e edita um disco que jorra ideias e premoniçōes. Tantas que só um formato duplo permite arrumar um corpo de trabalho soerguido na intuição do nascimento de uma música especial e marcante. É ali mesmo, ao longo de três noites, que decorrem as gravaçōes, sem necessidade de alugar um estúdio profissional.
Os Dias da Madredeus glorificavam um colectivo em estado de crisálida, ainda na rota de voos mais altos mas já dotado de uma personalidade única e suspensiva. As cançōes subvertiam o seu tempo e os modos habituais de então. Desse ângulo, eram um choque. Sondavam o campo (As Montanhas, A Estrada do Monte, A Cantiga do Campo) enquanto ressuscitavam um Portugal esquecido, intruso da modernidade. Propunham uma alternativa à diferença, mas não exerciam o contraditório através do confronto, como era hábito nas escolas punk e pós-punk das quais Ayres Magalhães e Leão descendiam. A sofisticação reenviava para algo eterno, intangível e indizível. E alimentava um culto próprio, com paralelo europeu em bandas como os Dead Can Dance, proprietárias de valores semelhantes como o medievalismo arty, a busca pela intemporalidade e o rosto neo-gótico.
Talvez a grande riqueza patrimonial dos Madredeus estivesse não só naquilo que definiram como em tudo o que deixaram em aberto. Circulavam entre o palpável e o imaginário. E apesar de firmemente rigorosos e disciplinados, não almejavam a perfeição. Ou pelo menos, não no álbum de estreia de 1987, gravado em apenas três dias com cerca de 250 contos. Condiçōes que não denunciam o pioneirismo da gravação:
“O álbum foi gravado no primeiro DAT que existiu cá. Nós tínhamos tido tempo para compor algumas canções, mas a construção do grupo também era a de uma escola de música. E era muito melhor gravar a música como o grupo a fazia do que ir para estúdio confrontar os músicos com técnicas que não dominavam. Nesse sentido eu propus a gravação em directo, com o grupo a tocar em ensemble”, contava Pedro Ayres Magalhães ao Público.
N’As Montanhas, um acordeão bailava a sós como num recital. Livre, desprendido, apenas pelo prazer de se soltar. N’A Marcha da Oriental, os princípios trovadorescos da música medieval, referência fundacional na doutrina dos Madredeus, entram pelo canal auditivo. A jóia reluzente é, sem surpresa, Vaca de Fogo, baseada num ritual testemunhado por Pedro Ayres Magalhães em terras barrosãs, perto de Chaves.
Os putos já fogem dela
Deitam fogo a rebentar
Soltaram uma vaca em chamas
Com um homem a guiar
“Estava lá e às tantas começo a ouvir no megafone: ‘Atenção, atenção, vai sair a vaca de fogo’. E o que era aquilo? Um ataque da aldeia de baixo, com a aldeia de cima a defender-se soltando uma vaca de fogo - um indivíduo com uma armação feita de alumínio e palha, cheia de fogo de artifício e a dançar ao ritmo dos tambores”. Do rito, os Madredeus compunham numa canção nobre, dramática e litúrgica, que haveria de os perseguir para sempre. Para o guitarrista e compositor, tratava-se da “representação da surpresa que um tipo vindo de Lisboa tem perante coisas tão antigas e tradicionais”.
O pesar do violoncelo, a valsa em fuga do acordeão e sobretudo a fragilidade da voz de Teresa Salgueiro transformam-na em single de rádio, primeiro, e em titularíssima da história da música portuguesa do pós-25 de abril. Um clássico quase instantâneo. Quando Os Dias da Madredeus chega às lojas, a crítica exulta. As primeiras cinco mil cópias voam. E a estreia em palco há-de dar-se no final desse ano, na primeira parte do concerto de apresentação de Mar D’Outubro dos Sétima Legião.
O modelo podia ter as medidas definidas, directamente ligado à “afirmação da nossa idiossincracia como nação”, mas os Madredeus passavam também por ser uma provocação elegante. Um desconforto auto-infligido - comum, aliás aos Faíscas, aos Corpo Diplomático e aos Heróis do Mar - em nome da renascença. Inspirar para respirar debaixo de água e vir à superfície purificado. Apesar de a voz soprano de Teresa Salgueiro correr pura e límpida como água da fonte e de a tez sonora transmitir serenidade, sob o espírito da paz havia tensão, desassossego e tempestade. E a visão de algo maior que podia não ter uma fé religiosa mas era miraculoso.
O peso exprimido pelo violoncelo de Francisco Ribeiro provocava uma comoção colectiva que não se cingia à tristeza ou melancolia. Era a evocação de um tempo ausente e irreal, uma omissão acordada por uma tempestade de verão. Aquela gravidade era verdadeira mas também inexplicável porque a música dos Madredeus assentava no indecifrável. Miguel Esteves Cardoso comparava-a ao oceano quando escrevia que “vai batendo de uma maneira e depois doutra, conforme a pedra da areia ou da rocha”.
Em Os Dias da Madredeus, nascia uma novilíngua resgatada à perenidade das melodias e das palavras. Despiam a electricidade e reduziam-se ao essencial. Harmonizavam sujidade e polimento. Conciliavam inocência e ambição. Restauravam a memória para inventar as horas. O título sugere um encontro descomprometido entre amigos e a estreia dos Madredeus transmite essa beleza irrepetível da espontaneidade das primeiras experiências, guiadas por um sonho maior. Que estas cançōes, capazes de nos deixar em pele de galinha e reduzir à grandeza da alma, estejam tão emudecidas é a perplexidade de um disco que vê florescer de uma mesma semente um destino particular grandioso e uma identidade colectiva.
Os Dias da Madredeus foi editado em vinil duplo em 1987 e em CD em 1990 pela EMI/VC. Todas as letras são de Pedro Ayres Magalhães e os instrumentais, à excepção de A Andorinha, são creditados ao colectivo. No 30º aniversário da sua edição, a Warner reeditou o álbum em vinil, recuperando o alinhamento original de 16 cançōes, que a edição em CD obrigara a encurtar (por questões técnicas, a edição CD deixara A Estrada do Monte fora do alinhamento)
Para mim será sempre um álbum envolto em brumas matinais, tanto misteriosas como acolhedoras, vistas de uma janela embaciada pelo quente da lareira em fogo. Obrigada pela viagem no tempo.