Sétima Legião - Mar D'Outubro
Quando os Sétima Legião gravam A Um Deus Desconhecido em 1984, tinham 18 anos e o dia clareava. Estavam ligados à Fundação Atlântica de Pedro Ayres Magalhães e Miguel Esteves Cardoso por quem começaram por editar o single Glória com A Partida no lado B. “Estávamos na nossa casa de sonho”, reconhece Pedro Oliveira, o vocalista que nunca se viu dessa forma. “Se as multinacionais nos tivessem convidado, teríamos optado pela Fundação Atlântica. Era ali que queríamos estar, numa independente com uma estética semelhante às das editoras de que gostávamos, como a Factory. Ainda por cima, o Miguel Esteves Cardoso era o meu ídolo. Queria conviver com eles”,
Oliveira ainda se entusiasma a recapitular a alvorada da banda. Ele, o baixista Rodrigo Leão, e o gaiteiro Paulo Marinho eram amigos de escola. “Não me lembro da minha vida sem eles. Tínhamos uma relação muito forte. Com dez ou onze anos, pegámos numas guitarras. Depois, o Paulo Teve a ideia mirabolante mas muito interessante de pegar numa gaita-de-foles”, recorda. Começaram por se expressar em inglês mas foi Miguel Esteves Cardoso a alertar para a contradição quando “nos disse que nunca tinha ouvido uma banda (pop) tão portuguesa”. O repto foi aceite e a experiência feliz de Glória, com poema de MEC, devolveu-os à terra. Os Sétima Legião não eram apenas uma embaixada de Manchester, eram uma banda para a cultura portuguesa.
Tinha sido Luís Filipe Barros o primeiro a trocar olhares com eles num concurso de rock no Pavilhão Alvalade. “Tocavam mal mas aquilo soava tão bem”, foi o quadro pintado a Ricardo Camacho, já então envolvido com a Fundação Atlântica, após ter produzido para os GNR (Sê um GNR e Hardcore (1º Escalão)), Manuela Moura Guedes (Flor Sonhada/Foram Cardos Foram Prosas) e Né Ladeiras (Alhur). “Fui vê-los ao Rock Rendez-Vous e foi amor à primeira vista. Eles acabaram [o concerto] e propus-lhes o contrato imediatamente. Que eles não aceitaram logo”, contava Camacho no quinto episódio da série da RTP A Arte Elétrica em Portugal. O contrato acabou por ser mesmo assinado no terraço da esquina da Avenida dos Estados Unidos da América com a Avenida de Roma, num sétimo andar a contar vindo do céu, feito sala de ensaios.
“Ouvia-se tudo lá em baixo”, recordava Ricardo Camacho, produtor do single de 1983, pressagiante do som de “catedral” definido por Pedro Oliveira sobre o inesquecível A Um Deus Desconhecido. “É um disco que vive muito do silêncio, feito por poucos músicos”, recorda. Esse sigilo telúrico, movido por uma fé espiritual, invade cançōes como Ritual, Vertigem e a lindíssima A Partida, talvez a mais bela reverberação do livro de estilo dos Joy Division com a gaita-de-foles de Paulo Marinho a guiar a liturgia.
“Éramos uma banda de culto, de mil discos. Sem ser elitista, pareceu-nos que o nosso destino era de nicho. Não nos passava pela cabeça sermos mais populares e ouvidos de forma mais transversal. De um disco para outro, isso mudou e a razão é musical. Nem é estética”, contava Pedro Oliveira. A formação cresce e a carga dramática também. Antes de a maré encher em Mar D’Outubro, Ricardo Camacho fixa-se como músico, Paulo Abelho também é integrado na formação e Gabriel Gomes traz o acordeão. “Foi uma transformação muito grande”, recorda Pedro Oliveira. “Passámos nas rádios e fomos para televisōes. Não conseguimos controlar esse processo. Aconteceu por si”.
Pedro Oliveira recusa a ideia de uma infância em A Um Deus Desconhecido e de uma adolescência em Mar d’Outubro mas reconhece “o crescimento muito grande” no “consolidar da estrutura das cançōes”. “No primeiro, havia uma ingenuidade maior devido à nossa idade”, aceita. Camacho é um arguido decisivo nesta mudança. “A entrada dele é natural. Apaixonou-se pelo nosso som e nós por ele. Deixou de ser um produtor e passou a ser um músico como nós a compor. Foi determinante porque ele era um músico incrível e tinha uma noção de canção muito apurada”, descreve. “E depois foi o som do acordeão que se conjugou de forma excepcional e emocionante com a gaita de foles”.
Gabriel Gomes “era um amigo que trabalhava ali ao lado no bairro e se sentava connosco a beber café”, conta Pedro Oliveira. “De repente, soubemos que tocava acordeão e dissemos-lhe ‘anda lá a um ensaio’”. Sem o saberem, estavam a resolver as dores de crescimento próprias de uma estreia bem sucedida. “Acabou por se revelar um músico fundamental ao vivo. Um motor para a banda”.
Se A Um Deus Desconhecido é um aluno brilhante da escola de Manchester, Mar D’Outubro é banhado em toda a sua costa pela portugalidade de que hoje tanto se fala. “Achámos logo que podia haver uma ligação com o som dos Joy Division. Não podíamos estar só a repetir fórmulas. Esta interacção com a gaita e com os tambores poderia ser muito importante na relação com a nossa tradição”. E foi. Na “colagem emocionante” entre instrumentos tradicionais e eléctricos não houve “nada de conceptual”, porque, adverte Pedro Oliveira, “éramos muito novos”. Havia sim “uma vontade de integrar algo que nos diferenciasse porque éramos muito portugueses”.
Mar D’Outubro entra de rompante com o clássico Sete Mares. É uma canção epopeica e pujante, repleta dos atributos que fizeram dos Sétima Legião um fabuloso destino. Melancólica, a rasar a dolência, enquanto a maré enche e transborda no refrão até desaguar no sul dos sete mares. A irmandade entre o acordeão de Gabriel Gomes e a gaita-de-foles de Paulo Marinho é crucial quer em Sete Mares, quer em Noutro Lugar, o segundo inesquecível single, mas neste arquipélago há outras ilhas.
Como o título sugere, O Baile (Das Sete Partidas) é um baile no bosque com fogueira acesa no meio, uma roda em volta e caldo verde no fim. Saudades tem uma forte veia celta enquanto Além Tejo tem no cante um afluente. “Desde o começo que pressentimos que este som das gaitas e dos tambores casava muito bem com este som inspirado na música inglesa. Não havia nada a opor. Era-nos natural. Não houve nada pré-concebido de impor uma tradição. Nada foi imposto”, explica Pedro Oliveira.
Curiosamente, o processo de gravação nasceu torto. “Eu nunca quis ser o cantor”, confessa. “Quando começámos a gravar, eu não estava a conseguir cantar. O canto, para mim, sempre foi instrumental. Relaciono-me com estas cançōes por serem as que nós compusemos porque as toco. Ser cantor nunca me foi natural”, assume.
Para descrever o “som único” e “inconfundível passados 40 anos”, é incontornável referir o manto sonoro construído por Ricardo Camacho e a riqueza verbal de Francisco Camacho, a mão invisível dos Sétima Legião. “Tivemos a fortuna de ter alguém incrível a escrever. As letras contribuíram para a Sétima Legião ter uma identidade muito forte”, assume o vocalista. “Havia um espírito de querer recuperar algo”, confirma. A melancolia traduzida numa poesia quimérica evocativa de um tempo ausente, de uma geografia sem fronteiras e de uma fé sem Deus. No mar desaguavam todos esses infinitos.
“Uma coisa mais etérea”, caracteriza, “que não falava do acontecimento social mais relevante daquele dia” e conjugava “muito bem com as palavras escolhidas e com o nosso som”. Marcas de uma intemporalidade crucial para a banda superar o teste do tempo mas que não os desvinculavam da pop metropolitana, como na largada à Psychedelic Furs de A Reconquista, uma das essenciais do álbum e dos concertos. Mas, além da névoa industrial de Manchester, os Sétima Legião estavam muito atentos à estética de editoras como a 4AD e a colectivos como Dead Can Dance, This Mortal Coil ou Cocteau Twins. Talvez o êxito tenha dissolvido o vanguardismo de Mar D’Outubro mas era um álbum situado à dianteira. “Nos anos 80, as editoras independentes tinham um conceito musical e uma estética muito própria. Era importantíssimo”. E tinha paralelo na entretanto fundada Ama Romanta de João Peste.
1987 é um ano de grande fertilidade para a música portuguesa. Saem Elevador da Glória dos Rádio Macau, Circo de Feras dos Xutos & Pontapés, Veneno dos Peste & Sida, Free Pop dos Pop Dell’Arte, Coisas que Fascinam dos Mler Ife Dada e Os Dias da Madredeus, além de Mar D’Outubro. Os nichos saem da garagem, as bolhas do Rock Rendez-Vous rebentam, uma nova pop diverge e explode. Diferentes movimentos, estéticas e histórias, mas com algo a uni-las: o reconhecimento do país na sua música. E, vinculada a essa ideia, a profissionalização do meio. Pedro Oliveira concorda. “Até pela língua”, diz. “Aquela geração tem um orgulho enorme em ouvir cantar em português. Fizemos parte de um tempo em que as pessoas se queriam modernizar. Queriam sair da Idade Média do Estado Novo. Podíamos estar próximos de Nova Iorque, Londres ou Manchester mas percebemos a importância de ter soluçōes em português. Isso criou uma cultura junto de quem ouvia. Não achavam que fossemos melhores nem piores. Era uma novidade total. As pessoas orgulhavam-se”.
O balão ainda há-de voar mais alto no sucessor De Um Tempo Ausente (1989), do qual fazem parte Por Quem Não Esqueci, seguidora dos passos de dança dos New Order, ou a sublime Porto Santo. “Foi o pico da nossa popularidade. Conseguimos um Disco de Ouro, fizemos dois Pavilhōes dos Desportos (Pavilhão Carlos Lopes) e cerca de 60 concertos por ano, mas não teria sido possível sem este”. Contemporâneos como a congregação Flor Caveira, ou bandas como Os Golpes, Capitães da Areia e Manuel Fúria a solo beberam desta água. Na nova portugalidade, os desfechos podem ser muito distintos mas o pacto entre a herança cultural e o seu devir é um processo de construção muito semelhante.
A grande epopeia destas cançōes é, porém, “o já não terem tempo”. Alojaram-se na memória colectiva e obrigaram o vulcão Sétima Legião a não mais adormecer. E vêm-nos à memória umas frases batidas: “De outra vez, noutro lugar/Os anos passam sem pesar/Sem razão, vão em busca da canção/Que ficámos de cantar/E tenho tanto por contar/Hey, tens tanto para ver/Tens ainda de aprender/Os nomes que dei ao mar”.
Mar D’Outubro foi editado pela EMI/Valentim de Carvalho em 1987. Está disponível nas plataformas digitais e em CD. O vinil só em segunda-mão. Os Sétima Legião celebram 40 anos de carreira nos dias 22 e 23 no Capitólio, em Lisboa. Os concertos homenageiam Ricardo Camacho, que partiu em 2018. O habitual cúmplice de Rodrigo Leão, João Eleutério, ocupa-se das teclas.