O último álbum de José Afonso antes do 25 de abril é inseparável de Cantigas do Maio, um dos vértices de tríade revolucionária formada com Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades de José Mário Branco e Os Sobreviventes de Sérgio Godinho. JMB foi o maestro residente nos três mas, no ano seguinte a Cantigas do Maio, José Afonso preferiu gravar Eu Vou Ser Como a Toupeira em Madrid, indiferente aos louros do antecessor.
Ao ritmo imparável de um disco por ano, voltou a Paris em 1973 e reencontrou JMB para uma semana de gravaçōes num estúdio de 16 pistas, na época o último grito da tecnologia. “Era como se fosse uma loja num centro comercial mas eles isolaram aquilo, pintaram os vidros e chamaram-lhe estúdio Aquarium”, recordava o produtor ao jornalista Gonçalo Frota no texto de acompanhamento da reedição de 2012.
O processo foi atribulado. Na troca de correspondência entre os dois, só as letras chegaram à morada parisiense de JMB. As maquetas, o esboço de todo o material, nunca foram ouvidas pelo produtor. Uma heresia para o rigor matemático de JMB. A uma semana do início das sessōes, José Afonso apresentou o corpo de cançōes que faria de Venham Mais Cinco um dos seus maiores clássicos e uma obra incontornável do seu tempo e da história da música portuguesa.
“Foi complicado sobretudo para o José Mário, que estava muito pouco informado do que íamos fazer. De modo que, durante a semana de gravaçōes, ele compunha oss arranjos e no dia seguinte estávamos a gravar”, contava o produtor José Niza em Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa 1960 - 1997, editado pelo Público. Cinco directas mais longas “que os interrogatórios da PIDE”, na contagem descrescente para fechar o processo.
José Afonso tinha estado 21 dias preso em Caxias. A 20 de Abril de 1973, quando a DGS lhe bate à porta da casa de Setúbal, vasculha a casa e descobre propaganda política portuguesa e galega. Voz incómoda para o regime pelo poder de agitar hostes, era seguido a cada passo. “Desde logo colocado no isolamento, Zeca é interrogado várias vezes. Ao fim de seis dias, recebe papel e caneta. Não podendo evadir-se de outra forma, desenha as palavras com um propósito escapista, embarcando frequentemente em textos (cerca de 20) de teor surrealista”, descrevia o texto do jornalista.
O disco vive entre o realismo e o surrealismo. Encena a lógica para fantasiar em liberdade, como na lindíssima balada Era um Redondo Vocábulo. “Podia ser uma canção de combate”, contextualizava José Jorge Letria, “a dizer "romper as grades e voar!. E não, faz um texto absolutamente surrealista, de um homem que pode estar à beira da loucura e está na pura efabulação surreal”.
Na cela, estava um homem em profundo sofrimento, sem uma guitarra para vestir as cançōes. A música foi criada e memorizada na cabeça, antes de chegar às mãos do guitarrista brasileiro e futuro director musical Yório Gonçalves. José Mário só conhece o músico quando José Afonso e José Niza, na qualidade de representante da Orfeu, batem à porta cinco dias antes da data combinada para ir para estúdio. “Foi terrível, terrível”, recordava José Mário Branco, auto-avaliado como um encenador sonoro.
Cantigas do Maio era transformador, Venham Mais Cinco é inovador. Se o primeiro era explícito nas intençōes, o irmão mais novo era muito mais sugestivo. Como um devaneio. Delírios explícitos em cançōes como Rio Largo de Profundis que arranca com 68 segundos de diálogo entre diálogo e violino desagua numa romaria ou em Nefretite não tinha papeira, de um humor quase indecifrável. A divertida e orelhuda Gastão era Perfeito é dedicada aos amnesiados que sobem na vida e esquecem de onde vierem. As vozes aceleradas de José Mário Branco dilatam a sátira. “Acho que ele andava a brincar com as palavras. Há sempre tentativas de explicação para as coisas, sobretudo quando se trata de génios, mas tenho a impressão de que neste caso não há explicação nenhuma”, concluía o produtor José Niza. “Há ali imagens e palavras que, se não fossem para ser cantadas, talvez ele não as tivesse escrito”. O poema fonético Paz, Poetas e Pombos é o exemplo perfeito da descrição sobre o recreio das palavras.
José Afonso não se desvincula em definitivo das baladas (Era um redondo vocábulo e Que amor não me engana estão entre as mais belas da sua obra) mas grava estimulado por experiências com instrumentos portadores de expansão. É no ritmo que está a inovação de Cantigas do Maio. Venham Mais Cinco, um hino à resistência que chegou a ser pensado para senha da Revolução, é o estandarte da mutação sonora. A letra fala sobre uma mão cheia de amigos a beber vinho tinto à mesa da taberna e desembucha um poema sobre a força do colectivo e da importância de lutar contra as injustiças. Da mestiçagem entre folclore e uma melodia de inspiração africana sai um dos maiores clássicos da canção política portuguesa e o “quiriririri”, que ainda hoje salta de boca em boca nas ruas. Não é por acaso que foram os caboverdianos Tubarōes a rever Venham Mais Cinco no tributo Filhos da Madrugada cantam José Afonso. Desde Contos Velhos, Rumos Novos, de 1969, que África fazia parte do imaginário de José Afonso.
Também não foi aleatória a escolha dos Sitiados para retrabalhar A Formiga no Carreiro no mesmo álbum. É de novo um hino à resistência com uma flauta em vez das vozes de Venham Mais Cinco e um complexo arranjo de cerca de uma dezena, entre guitarras, sopros, pandeiretas e percussōes. As segundas vozes escutadas no final são um efeito de duplicação da velocidade.
Não é por acaso que imediatamente depois de José e a mulher Zélia Afonso terem dado o aval ao disco, após uma última audição integral, o corpo de José Mário Branco cedeu e desmaiou logo ali sobre a mesa de mistura. Cada canção tinha sido encenada como uma curta-metragem autónoma. Por comparação com Cantigas do Maio, reflectia, “o Venham Mais Cinco foi mais problemático – o processo, não o ambiente e o relacionamento, que foram excelentes. Foi mais físico”, contava a Gonçalo Frota. “Fiz umas cinco directas”, recapitulava sobre a exigência do processo.
Venham Mais Cinco é tão determinado no espírito combativo como rico musicalmente. Dá voz à insatisfação das ruas e canaliza a energia popular para hinos de assimilação imediata com impacto até hoje, mas reserva um quarto para o ilógico e absurdo que fazem do disco simultaneamente uma obra resistente à passagem do tempo e infindável na descodificação de enigmas. Pressentia-se um Abril em marcha. Hoje como então não há lugar para os filhos da mãe.
As gravaçōes decorreram durante uma crise de petróleo que esteve na base da falta de vinil na Europa. “Saí de Paris para ir fabricar a edição a Londres e, quando lá cheguei, fiquei assustado porque a fábrica encarregue do serviço mais parecia uma carpintaria. Se já o vinil não era bom, pior era a qualidade da prensagem. Quando o Zeca recebeu o disco, ficou para morrer”, contava José Niza. A segunda prensagem já foi feita numa fábrica portuguesa com “vinil do bom” dos discos “que faziam para as tropas”. Venham Mais Cinco já mereceu diferentes reediçōes, a última em 2022 pela Mais 5.
O B Fachada tem tanto disto, mas estes tempos estão bons é para os filhos da mãe.