José Mário Branco - Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades
Porquê voltar a Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades quando já foi sobejamente escavado, perscrutado e revisitado, antes, durante e depois da perda de José Mário Branco? Sim, porque quando parte alguém com a espinha tão direita, a decomposição física é só um mal da matéria. A 19 de novembro de 2019 caiu um pilar.
Nem é tanto pelas infelizes coincidências entre o fascismo e o avanço de forças políticas anti-democráticas um pouco por todo o mundo. O simbolismo da mudança é apetecível quando assistimos à erosão dos sistemas de segurança dados por intransponíveis, do liberalismo lunático enquanto plano de fuga e do individualismo digital enquanto resposta. O presente não é, felizmente, igual ao que obrigou José Mário Branco a fugir para França mas pelo relógio está a tocar para a saída. É hora de combater por um tempo novo. De novo.
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades não foi apenas uma das senhas musicais de uma revolução pressentida já durante o marcelismo mas ainda a três longos anos de se soltar das amarras. É revolucionário em cascata: política, musical e poética. Um disco ainda mais extraordinário quando não havia manuais por onde estudar para além de José Afonso e Adriano Correia de Oliveira.
“Já ouvíamos o Zeca. No Aljube, os amigos que passavam cantarolavam as canções do Zeca para dar sinal. O Zeca já tinha singles e EP. O Adriano também era conhecido. Não havia quase mais nada. O sinal de abertura para coisas novas na canção urbana era o Zeca. A influência dele foi determinante. Eu ainda não fazia canções”, explirava em entrevista ao i em 2018.
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades é denso, complexo e radical. Mora na sombra mas tem a coragem de um Sansão na demanda pela invenção do dia claro. O combate não foi em vão e a liberdade chegou por fim, mas tanto a canção que lhe dá nome como o álbum são muito maiores do que um tempo ou lugar. Não têm fim, e hoje como em 1971, o soneto de Luís Vaz de Camōes permanece inspirador: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/Muda-se o ser, muda-se a confiança/Todo o mundo é composto de mudança/Tomando sempre novas qualidades.” Razōes não faltam para voltar a um objecto incontornável da história da música portuguesa, central para sentir o desapertar do garrote.
Exilado em Paris desde junho de 1963 para fugir à tropa, grava o primeiro EP, Seis cantigas de amigo, em 1969, editado pelos Arquivos Sonoros Portugueses, com a aprovação de Michel Giacometti que reconheceu grande valor nas cantigas, e também com o apoio de Fernando Lopes-Graça. No ano seguinte é publicado o EP Ronda do soldadinho/ Mãos ao ar!, uma edição de autor. Estima-se a entrada clandestina em Portugal de três mil cópias.
Em casa, grava aquela que seria a maqueta de um primeiro álbum. Nome provisório: Canto Duro (título abandonado e canção deixada para trás por ter sido considerada “fraca”). É José Afonso quem leva a cassete até Lisboa. A Orfeu (por quem Zeca gravava) e a Sasseti interessam-se. A segunda oferece condiçōes irrecusáveis a José Mário Branco. “Liberdade total de criação, os músicos que eu quisesse, os estúdios que eu escolhesse”, recordava em Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa 1960 - 1997 do Público. A escolha recaiu sobre o Strawberry Studio, de Michel Magne, no mítico Chateau D’Hérouville, por onde já tinham passado os Rolling Stones e Elton John, e onde seriam gravados ainda nesse mesmo ano de 1971 Os Sobreviventes de Sérgio Godinho e Cantigas do Maio de José Afonso, ambos com a impressão digital de José Mário Branco.
As possibilidades técnicas e o acesso a músicos foram decisivos para elevar o álbum a uma estatura inaudita na música portuguesa. E é impressionante, de facto, a visão de José Mário Branco quando quase tudo estava por inventar. Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades é o portal de um novo futuro. Cançōes como a Cantiga para pedir dois Tostōes, Mariazinha, Casa Comigo Marta ou Perfilados de Medo expōe uma emboscada à vanguarda pop da época, representada por Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band dos Beatles, que fazem um casamento perfeito entre resistência política e arrojo estético.
A partida da Gare D’Austerlitz é de aparência inocente na sua melancolia instrumental mas revela um trabalho meticuloso de sonoplastia. É José Mário, produtor e realizador, a entrar em cena. “Eu queria um som que fosse sonoplasticamente encenado de forma a sugerir mesmo o ambiente da chegada aos comboios dos emigrantes e dos refugiados”, contava no livro. “Fomos falar com a chefe da estação e ele disse-nos que não havia problema. Gravámos durante o dia, à hora da chegada do Sud-Express, mas o som ficou uma confusão dos diabos”.
Foi necessário “repetir tudo mas de noite”, recapitulava. “O chefe da estação tinha que refazer aos microfones, para ficar com o som “limpo”, o anúncio da chegada do Sud. De preferência, com “Lisbonne, Madrid” à cabeça da lista das cidades que o comboio percorria. O chefe concordou mas, antes de começar, nos testes de som anunciou por brincadeira os comboios mais disparatados: vindos de Tombuctu, com passagem por Varsóvia, Praga, Nova Iorque…No fim da gravação, já o chefe fechava os portōes da gare, ouve-se um alarido de sirenes e chegam ao local sete ou oito carrinhas da polícia a toda a velocidade, deixando sair a correr, em passo de combate, grupos de polícias de choque. Alguém telefonara a dizer que “uns doidos” tinham assaltado a estação! Por sorte, o equívoco desfez-se depressa e a legião de CRS acabou por desaparecer na noite”.
Uma história deliciosa de um disco que, apesar de feito de fibra resistente, contém um sentido de humor mordaz (“Chamava-se ela Marta/Ele, doutor Dom Gaspar/Ela pobre e gaiata/E ele rico e tutelar/Gaspar tinha por Marta uma paixão sem par/Mas Marta andava farta, mais que farta de o aturar” em Casa Comigo Marta; “Numa rua de má fama/faz negócio um charlatão/vende perfumes de lama/anéis d'ouro a um tostão/enriquece o charlatão“, em O Charlatão, escrita por Sérgio Godinho, que ainda hoje a leva para os concertos). A Cantiga para pedir dois Tostōes é rock psicadélico da melhor safra, com baixo eléctrico possante e uma guitarra wah-wah - o equivalente da época ao auto-tune, introduzido poucos anos antes por Jimi Hendrix, com alguma desconfiança do meio rockeiro.
José Mário Branco socorreu-se de poetas para expulsar os fantasmas da laringe. A Queixa das Jovens Almas Censuradas (de Natália Correia) é um dos mais poderosos clamores da amargura, enquanto Perfilados de Medo é devastadora no seu minimalismo aterrorizador - a ditadura, quando não se podia falar dela nem nomeá-la. “A música é o terreno onde isto acontece. É a paixão desde puto. Desse encontro com a paixão pela poesia, saem as canções. Numa primeira fase, houve o sentir que estas canções ajudavam ao movimento social. Eram instrumentais, uma espécie de encomenda social”, observava na entrevista ao i.
Há a capa, a preto e branco, com um olho imerso no vazio e a contracapa com um olho iluminado. Contrastes na retina de José Mário Branco, a partir de uma ideia de José Rodrigues. O grafismo era um espelho do combate entre a desesperança e a urgência de transformação. “O disco foi feito já com a abertura do marcelismo, mas eu estava muito céptico em relação às possibilidades de uma mudança em Portugal. É mesmo um disco a preto e branco, e ainda hoje me provoca um sentimento ambivalente”, comentava em 1997 nas páginas do livro dedicado à obra. “Por um lado, carrega a neura do exílio, da resistência, do puxar de energias sabe-se lá de onde para continuar a resistir não sabendo muito bem quando é que o inferno vai acabar. Por outro, há o despontar para um sentido da vida, o abrir de uma porta a um caminho de criação. Esse lado positivo fez-me apontar para Portugal de baterias carregadas com o Maio de 68”.
E depois há Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, a profecia final de um disco vivo, perene, indestrutível. “Em 71, quando sai o meu primeiro álbum, o impacto foi forte. E depois o segundo, a par de outros discos importantíssimos do Zeca Afonso, do Adriano, do Manuel Freire, do Fanhais e em paralelo com o Sérgio Godinho. Era preciso mudar este país. Isto era horrível. Tinha que ouvir às escondidas o povo a cantar. A doutrina cultural do que era a música portuguesa eram três ou quatro clichés: o fado e da música rural, o vira, a chula e o fandango. Tudo o que saísse daí não interessava. Nem o cante alentejano porque o Alentejo era suspeito...”, observava na conversa com o i.
Se os estragos políticos são conhecidos, o lastro musical é interminável, dos Xutos & Pontapés aos UHF, dos Mão Morta aos Peste & Sida ou Linda Martini, de Valete a Sam The Kid, Chullage, Camané, B Fachada ou A Garota Não, só para citar os mais evidentes. Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades era um manifesto subversivo contra a ditadura, e em paralelo afirmava um escritor de cançōes, produtor e maestro. José Mário Branco atribuía ao som a mesma importância que à poesia e dessa sinapse nascia um todo maior chamado canção. Até aí, dominava a balada monocórdica e pobre, prevalecente da palavra em nome da acção político, mas tudo mudou com a chegada de José Mário Branco.
Em Perfilados de Medo não são apenas os versos de O’Neill a cortar a respiração (“Aventureiros já sem aventura/Perfilados de medo combatemos/Irónicos fantasmas à procura/Do que não fomos, do que não seremos”). É o ritmo da opressão a avançar sobre os justos, como os passos de um agente da PIDE a caminho de um interrogatório.
Nos quadros sonoros, coexistem o medo e a bravura, a amargura e a esperança, o realismo e a ironia. A censura obrigava a literalidade a vestir-se de metáfora mas o efeito foi de ricochete. Da asfixia do vocabulário, nasceram Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, Os Sobreviventes de Sérgio Godinho e Cantigas do Maio de José Afonso, uma trilogia fundamental para a enciclopédia da música portuguesa. Cantigas de mal-dizer que eram de amigo para o povo cansado da mordaça, da miséria, da fome e do atraso. Em ambos os álbuns, José Mário Branco tem intervenção como compositor - O Charlatão e Cantiga da velha mãe e dos seus dois filhos, d’Os Sobreviventes, e músico em ambos - mas dada a importância do seu papel, podemos chamar-lhe, com pouca margem de erro, um encenador musical.
“Nunca fui político, fui para a política por ser um criador artístico para quem a liberdade é fundamental na criação. O ato criativo é um acto de liberdade. A folha está em branco e o microfone está à espera de ouvir alguma coisa”, declarava na entrevista ao i. José Mário Branco não preencheu só páginas em branco. Foi relator do passado e guionista de um futuro a tinta permanente. Mas convém não perder no défice de atençåo algumas das suas últimas palavras: “Desde muito jovem, é esta liberdade que preciso. Estar em contradição com os poderes”.
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades foi editado em vinil em 1971. Na década de 90, foi reeditado em CD. Está disponível nos formatos físico e digital, e é uma das obras maiores da história da música portuguesa. Há uma petição a decorrer para classificar de interesse nacional a obra de José Mário Branco.