Corpo Diplomático - Música Moderna
No princípio, havia Os Faíscas, os Aqui D’El Rock e os Minas e Armadilhas. Estávamos no verão de 77, o ano do Jubileu do punk, mas as primeiras bandas portuguesas representantes do género duraram menos que um fósforo.
“No final dos anos 70, Lisboa está em ebulição”, retrata Ana Cristina Ferrão em Cento e Onze Discos Portugueses - A Música na Rádio Pública, repleta de “pequenas células de agitação cultural que prosperavam, alimentadas pela frequência de gente que não se revia no espartilho intelectual (…) do 25 de abril, onde pontuavam as bandas de baile ou cantores/autores de intervenção política”, escreve.
Das cinzas dos Faíscas nascem os Corpo Diplomático, formados por Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves e Emanuel Ramalho. Dedos de Tubarão, Rocky Tango–Rock Assassino e Gato Dinamite–Flash Gordon passaram a ser Dedos Aires, Falso Alarme e Flash Gordon, respectivamente, a que se junta Rui Freire “Choque Eléctrico” (sintetizador). Já com Carlos Maria Trindade “Carlos Maria” (órgão) escolhem para vocalista Carlos Gonçalves “Ultra Violeta” das audiçōes por onde chega a passar António Variaçōes.
Dos Faíscas, cristalizaram a provocação e somaram às estruturas musicais simples de três ou quatro acordes suplementos new wave, que fizeram de Música Moderna um disco agridoce com refrōes pop como os de Lisboa (quem quer comprar um Ferrari) ou Televisão. O primeiro disco punk português tem tanto de inóspito e anti-convencional (como na icónica Kayatronic) como de saltitão e sarcástico. Todas marcas do punk, embora nem sempre coexistentes. Os Corpo Diplomático “eram o espelho da nossa new wave”, recordava António Sérgio na obra Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa do Público. Já o vocalista Carlos Gonçalves, anos mais tarde a voz dos Raindogs (assim como jornalista de A Bola), sublinhava “a estética e abordagem diferentes” importada de nomes como The Normal, Human League ou Pere Ubu, aos quais se podem acrescentar os Devo, com a ambição de encurtar as distâncias entre o mapa musical português e o atlas global, sobretudo o anglo-saxónico.
Ao leme da Rotação da Rádio Renascença, António Sérgio já conhecia os Faíscas, que impulsionara a nascer, e identificou nos Corpo Diplomático diferenças para outras bandas da época como os Tantra. “O reportório tinha interesse, era bastante provocador”, recordava na obra publicada em 1997, citando o sarcasmo de Amor de Guichet: “um gozo ao empregadinho de escritório, aquele ambiente um bocado podre dos notários, o tipo de ambientes que lá fora o punk também atacava”.
O “lobo”, então ligado à editora Nova, responsável pela distribuição de catálogos como o da Stiff e da Sire, fora o responsável pela introdução do punk em Portugal, quer com a divulgação em antena de bandas como Sex Pistols, The Damned ou Generation X, quer com a edição de um disco pirata, uma colectânea não-oficial de bandas da época. Sérgio acreditava especialmente na parelha Pedro Ayres e Paulo Pedro, “uma dupla totalmente criativa”, e acabou por produzir Música Moderna com João Henrique, com créditos firmados na área do cançonetismo. O radialista e amigo era o interlocutor de uma banda na flor da rebeldia.
E se por um lado, os Corpo Diplomático corporizavam perplexidade, ruptura e confronto, por outro eram dotados da mesma racionalidade conceptual dos Heróis do Mar provocadora de debates violentos sobre identidade, simbolismo e nacionalismo. Portugal era ainda uma democracia recém-nascida e conservadora. O atraso na recepção de informação do exterior fazia de Música Moderna um primeiro disco punk da história já transitório para uma nova era - new wave, neste caso, como podia ser pós-punk - observador crítico de um provincianismo de café como em Maria ou na citada Amor de Guichet. Um modernismo por oposição ao saloismo, usado como bandeira nos Heróis do Mar, e respondido pelos Ocaso Épico. “Oh! Oh! Lisboa/pobre cidade/actores sem emprego/atrás da oportunidade“, testemunham em Lisboa.
Na declaração de guerra a um passado monocromático, foram atropelados pela realidade. A demanda por um novo futuro foi um sonho lindo de pavio curto e o país que tínhamos não permitiu a Música Moderna ser mais do que um delírio. Nas rádios, foi um grito mudo. Das mil cópias prensadas em vinil, apenas metade se venderam. Hoje, cada uma vale cerca de 250 euros no Discogs. Em paralelo com o álbum, foi editado um single de coleccionador com A Festa do Bruno no lado A e uma versão experimental com ruídos de maquinista de Engrenagem, de José Mário Branco, a primeira de uma banda rock para uma canção da revolução, no lado B.
Os Corpo Diplomático estrearam-se ao vivo na primeira parte dos Tubes, em Cascais. Dão alguns concertos em Lisboa e pelo país. E pouco depois já procuram um novo vocalista. É a pena capital do grupo que se separa em setembro de 1980. Pedro Ayres Magalhães, Paulo Pedro Gonçalves e Carlos Maria Trindade fundam os Heróis do Mar em 1981 com impacto imediato. Emanuel Ramalho está nos Street Kids, Rádio Macau e já na década é o baterista dos Delfins no apogeu de O Caminho da Felicidade e Saber a Mar.
Música Moderna foi editado em 1979 pela Nova e pode ser ouvido aqui. Nunca foi reeditado nem está disponível nas plataformas digitais de streaming. É uma das peças mais disputadas da música portuguesa, sobretudo entre coleccionadores estrangeiros