Ocaso Épico - Muito Obrigado
E se no multiverso dos acontecimentos, José Pinhal tivesse sido Farinha Master? O extraterrestre do Algueirão tem muito mais camadas de atmosfera do que o anódino cantor de bailes, desenterrado por mestres em sociologia a brincar à reciclagem. Em linguagem futebolística do líder do PSD, Farinha 5 - 0 Pinhal. Um dava baile ao baile, o outro era o baile onde não queríamos estar com os primos de Havre a comer uma fartura embebida em litros de óleo da semana anterior. Quer algodão doce? Não, obrigado. Vai uma voltinha nos carrinhos de choque? Muito obrigado.
Nascido Carlos Cordeiro, Farinha Master era uma figura tão peculiar quanto foi presciente e incompreendido. Não comia carne, aprendeu filosofia oriental, praticava yoga, estudou guitarra, flauta e voz no Hot Club, fez teatro e com o dinheiro ganho a representar na Comuna, comprou o primeiro sintetizador. O berço dos anos 80 é o parto dos Ocaso Épico.
Todas as ideias vinham da mesma mente delirante. Farinha era a parte e o todo, como Robert Smith nos The Cure ou Matt Johnson no The The. Os Ocaso Épico eram uma unidade móvel por onde passou gente como Anabela Duarte (mais tarde, dos Mler Ife Dada), Ricardo Camacho (esse mesmo, o da Sétima Legião e da Fundação Atlântica), Zé Nabo (baixista de Rui Veloso e da Ala dos Namorados), Manuel Machado (acordeonista dos Essa Entente), Alberto Garcia (bateria) e Rui Fingers (guitarra), ambos com ligaçōes a nomes como V12, Rádio Macau e Paulo Gonzo.
Pisam com regularidade as tábuas do Rock Rendez-Vous onde caem nas boas graças do proprietário Mário Guia, que convida a gravar pela Dansa do Som - em 1984, ano. em que participam na colectânea Ao Vivo no Rock Rendez Vous, foram considerados a melhor banda ao vivo no programa de António Sérgio, à frente dos GNR. O resultado vem a ser Muito Obrigado, disco muito aquém do potencial demonstrado em palco. “O disco teve uma produção de fraca qualidade. Foi produzido praticamente por mim, pelo Mário Guia e pelo Zé Nabo, só que eu nunca tinha entrado num estúdio”, reconhecia Farinha Master em entrevista a Fernando Magalhães no livro Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa (ed. Público/FNAC). “Em casa”, conseguia obter um “som melhor”, lamentava.
Trinta e cinco anos depois, o lo-fi involuntário é um rodapé. Enquanto objecto não reeditado, Muito Obrigado pode ser autopsiado como um cadáver esquisito. No entanto, se há discos aos quais o tempo dá toda a razão este é um deles. Folclórico subversivo, étnico-parolo, vivia entre o campo e a cidade, o café da esquina e a viagem esotérica. Um delírio que começava assim em Tinto If: “a produção musical/do triste saloio nacional/nunca deixou de cheirar o cu ao capital”.
Na obra referida, Fernando Magalhães chamava-lhe um objecto de difícil definição. Inimigo de si mesmo, e demasiado antipático para com o meio, Farinha nunca teve um avo da aclamação popular de António Variaçōes, mas não foi por falta de talento. Hoje, Carlos Cordeiro podia chamar-se Tiago Miranda e Farinha Master ser um alien cá do burgo como Conan Osiris. Da Beira Baixa à Extrema-Dura, como satiriza a canção, os fundamentos da “nova tradição” já habitavam o fascínio dos Ocaso Épico.
“Portugal é um país de cultura emergentemente rural”, profetizava. Trinta anos antes de Osiris, Pedro Mafama ou Filipe Sambado, a “portugalidade” já era servida em colheres de arábica. Na anarquia de Farinha Master, cabiam o cante alentejano, o rock, o industrial alemão, o folclore da terrinha e a movida do Bairro Alto, satirizada em Café Cucerto.
Muito Obrigado é uma provocação nada barata. Um gesto de arte subversiva que apesar de se ter tornado culturalmente inteligível, enfrentaria marginalizaçōes sociais e bloqueios do Twitter. Um disco de brandys costumes. José Pinhal foi desenterrado pela paródia, Farinha merecia sê-lo pelo carinho.
Muito Obrigado foi editado pela Dansa do Som, de Mário Guia, em 1988. Nunca foi reeditado. O disco pode ser ouvido aqui e adquirido no Discogs por 40 euros. Foi incluído quer entre os Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa, do Público, quer na colecção Cento e Onze Discos Portugueses. Em 2021, os Vaiapraia apresentaram uma versão de Café Cucerto na Antena 3. Farinha Master morreu em 2002 com 44 anos, vítima de cancro no pulmão.