A Garota Não - 2 de Abril
A vida são dois dias e 2 de abril já faz dois anos. 2 de abril de 2022. Um sábado improvável para rebentar águas. “A data que decreta a Constituição portuguesa, o nome do bairro onde nasci e, agora, o nome deste disco que fala do quotidiano sem glamour, de movimentos perpétuos, da fé que perdemos”, introduzia Cátia Mazari Oliveira. Na declaração de intençōes, todas as peças do puzzle encaixavam. A representação da democracia, a geografia de bairro e a narração na primeira pessoa de um infinito particular afirmavam um guião próprio, vivido, sentido e devolvido à comunidade. Não era apenas um disco, era um imenso poema de resistência. Ou o gosto de observar um sítio de coisas selvagens com uma beleza interior violenta. Estava aberto o livro do desassossego.
Em março, Dilúvio deixara um primeiro aviso para a tempestade. Era uma canção lindíssima, sufocada pela privação embora doce na reacção, com guitarras western à Morricone e uma teatralidade não encenada da protagonista. Só quem tira a dor do fundo e faz dela pedaços de arte pode ter a pujança de cantar “e a dor que mais me mata/é já não te fazer falta/é fazer falta a ninguém” ou “e o que achamos importante perdemos mais adiante no fim só restamos nós”. Aqueles versos não podiam ser apenas relâmpago; traziam trovoada. E abrigo.
O tempo-míssil de Dilúvio é um bom prisma para observar o álbum que fez d’A Garota Não um ser maior. Em vinte e quatro meses, tudo mudou - a maioria absoluta caiu e a extrema-direita avançou. Em 1004 dias, nada mudou - a guerra na Ucrânia normalizou-se. Em 1582560 minutos, tudo piorou. Em Gaza, o conflito israelo-palestino explodiu e em vez de uma, passámos a ter duas guerras a matar civis inocentes.
A resposta às calamidades tem no notável texto da Canção Sem Final, escrito por João Monge no tempo certo de Fred Pinto Ferreira, um colete à prova de bala:
Podem decretar o fim da arte
É como decretar o fim da chuva
Há sempre alguêm que sonha em qualquer parte
E a nossa voz nunca será viúvaPodem decretar o fim do pão
Espalhar pela seara uma alcateia
Mas quem nasce a fazer a divisão
Pode morrer pela última ceia
2 de Abril “também fala do horizonte e do fôlego infinito. De honrarmos a
vida”, advertia. Porque, tal como escrevia José Mário Branco em A Cantiga é uma Arma, “tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria". O protesto, indignação e a raiva eram o combustível mas no final da borrasca vinha a esperança.
Dois anos são um fósforo mas 2 de abril fala por muitas primaveras. O álbum não só mudou a vida d’A Garota Não como restituiu um bem essencial. Desde o triunvirato José Afonso, José Mário Branco e Sérgio Godinho que ninguém personificava com tanta credibilidade e autenticidade o ideal de voz do povo. Recuperou o altruísmo do combate colectivo, invocou o espírito da rua, foi megafone da amargura, fez-se comício com gente dentro - a democracia em forma de refrão num época diferente do pré e pós-25 de abril, com infelizes semelhanças a galopar as manchetes. Ergueu um altar de preocupação social e atenção ao problema. Estas cançōes eram precisas e muita gente precisava delas. A partir do “seu fim do mundo”, reportou inquietaçōes nem sempre espelhadas no espaço recentes da música portuguesa, ou pelo menos não com esta íntima relação entre profundidade e organização, com causa socioeconómica e consequência artística. Uma working class hero, inédita enquanto mulher na música portuguesa.
A escrita fala pelas convicçōes políticas mas o que distingue o panfleto da arte é a condição humana acima da ideologia. O grande cancioneiro português de protesto só podia ter tido mão canhota mas a sua grandeza permite-lhe atravessar quadrantes políticos, classes sociais, desconforto e privilégio. É dessa magnitude sincera na intenção e no processo que é feito 2 de abril.
Clássico instantâneo, deixou um rasto de clamor enquanto conquistava reforços e aliados, mas a aclamação aconteceu em câmara lenta, por não encaixar nas narrativas dominantes da agenda mediática. Talvez por habitar nas tensões e não tratar feridas profundas com Betadine, precisou de tempo para ser ouvido e compreendido. O público foi mais lesto a reagir que os media mas a traineira do Sado - pequena embarcação no lago dos tubarões - percorreu a costa sem pressas nem anseios de ser arrastão e quando deu por si era um instituto de socorro a náufragos.
“A Garota Não agora sim”, começava o comentário publicado nas redes sociais da Mesa de Mistura a 8 de Abril de 2022. “Precisou de tempo Cátia Mazari Oliveira até encontrar a sinestesia entre o pulsar de menina, o saber acumulado de mulher, e o teatro sonoro ideal para contar uma história. Que é sua, mas reivindica o espaço muito particular do Bairro 2 de abril, em Setúbal, lugar de brincadeiras de pés descalços e despertares de consciência para a pobreza, o desemprego, e o silêncio depois do grito. É um disco cheio. De histórias, personagens, poesia e rua. De arranjos negros de luz. De sobras de inquietação e réstias de esperança. Demorou, sim, mas valeu a pena andar com os pés em ferida só para chegar até aqui”. (uma pesquisa rápida encontra uma primeira referência a 6 de março de 2001 na magnífica colaboração com os Orelha Negra em Ready (Mulher Batida), apresentada no programa Eléctrico da RTP).
Em 2019, estreava-se com Rua das Marimbas n.7. Apresentado no Pequeno Auditório do CCB com casa cheia, teve rédea curta devido à pandemia. O álbum recolheu comparaçōes (justas) com o livro de estilo literato e docemente insatisfeito de Márcia. Se o álbum de estreia é um primeiro andar em fase de recheio, 2 de Abril é um prédio com elevador. A devoção por este pede uma reapreciação a Rua das Marimbas n.7, inaugurado pela lindíssima No Dia do Teu Casamento. Quase tudo o que há em 2 de Abril já tinha sido declarado no antecessor, como em 80.nada, sobre a falsa sensação de liberdade dos recibos verdes e A morte não sabe contar, escrita em homenagem à mãe já falecida vítima de doença. No álbum que a trouxe para a ribalta, A Garota Não achou um idioma próprio, claro e lúcido, feito com o vocabulário de mestres como José Afonso, José Mário Branco e Sérgio Godinho, assim como da matéria verbal do rap português, de notas de música brasileira e angolana.
Que mulher é essa, afinal? “Eu vivia num prédio, daqueles de bairro social, onde no rés-do-chão havia uma família cigana que ouvia flamenco, no primeiro andar uma família angolana que ouvia tudo e mais alguma coisa que tivesse aquela raiz africana e no andar de cima havia um vizinho que era louco pela electrónica, tudo com o som alto”, contava ao Público em 2019. Fez uma licenciatura em Comunicação e Cultura, trabalhou na rádio local, deu aulas de inglês e natação. Fez o circuito de versōes de MPB e jazz a cantar clássicos como Águas de Março e é durante uma série de concertos em adegas que um senhor começa a pedir no final de cada canção a Garota de Ipanema. Resposta: “A Garota Não”. E o nome ficou. Trabalhou a recibos verdes e pediu juros de mora à precariedade. 2 de Abril é uma doce reflexão sobre chuvas ácidas. Conta histórias, transmite catarses e expōe hematomas. A caneta é o cartucho do desconforto mas quer a escrita, quer o papel determinante do guitarrista Sérgio Miendes enquanto cenógrafo contribuem para içar uma obra maior, incontornável da música criada em Portugal no pós-25 de abril.
O ensaio sobre a solidão de Prédio Mais Alto e a fractura exposta do desalojamento local na assombrosa Não sei o que fica, com projécteis de Chullage desferidos a partir das águas furtadas, aumentam o volume quando o assunto é infelicidade interna bruta. Mas às vezes o amor também acontece no calendário como no cabo boa esperança de Urgentemente, na melhor tradição de pequenas maravilhas como O Namoro, escrita por Fausto apesar de mais conhecida na voz de Sérgio Godinho, ou da gentil O Amor é Bom. A Grande Máquina é a outra primogénita de SG, o gigante, com quem trocou galhardetes no Teatro Maria Matos em 2023, que convidou para a noite esgotada no CCB em dezembro, e de quem foi convidada já este ano nos concertos dos coliseus de Lisboa e Porto, “oferecendo” Diga 33 apenas com base nas pré-histórias de SG.
As heranças são plurais. Química descende directamente da MPB, enquanto a vénia a Ai Weiwei tem métrica de rap e megafone de arruada com discurso sindicalista. A sede do Xega cambaleia entre o tom lisérgico de Halloween e o real surrealismo do Venturismo. Mediterrâneo II traz o conterrâneo Ohmnoizciente para se imaginar na pele dos migrantes que tentam atravessar o mar para chegar a outra terra em busca da oportunidade de ser alguém.
No Diário de Notícias, Pedro Tadeu descrevia-a como “cantora de protesto em dias onde a raiva é a bala de prata da injustiça social” e dela dizia que “a meiguice é a melhor arma”. Já a Mulher Batida e Que Mulher É Essa reivindicam um feminismo fundador e calejado, comparável ao da Sereia Louca de Capicua, embora menos académico. “E tem sido assim: venho de um dos fins do mundo de pé descalço e com muita vontade. Toco guitarra, piano e percussões. Mas pouco. Gosto de cantar e sobretudo gosto de escrever”, assumia sem truques Cátia Mazari Oliveira.
2 de Abril força muros a abrir janelas de esperança. Graças a um disco de transparência fulminante, passou a ser também uma data histórica para a cultura portuguesa.
2 de abril chegou no mesmo dia de 2022 sem gritaria. As ediçōes físicas em CD e vinil são limitadas mas o álbum pode ser escutado nas plataformas digitais. Foi A. Venceu o Prémio Autores 2023 na categoria de Música para Melhor Álbum de Música Popular, assim como o Prémio José da Ponte, ambos da SPA. Deixou marca em festivais como o Bons Sons, FMM Sines, Paredes de Coura e A Festa do Avante. Em horário nobre, surpreendeu tudo e todos com um poema Kombucha após ter recebido, contra todas as expectativas, o prémio de Intérprete do Ano nos Globos de Ouro. No final de 2023, concertos esgotados no CCB e na Casa da Música encerraram um ciclo. Já depois do álbum, deu a conhecer o inédito 422. Saibamos agradecer aos administradores pelos 422 milhōes de lucro da GALP num semestre terem gerado proveitos como este.