Capicua - Sereia Louca
Sereia Louca ou serei a louca? A criatura mitológica, meia-mulher, meio-peixe, surgiu num sonho muito realista, daqueles que de manhã ainda estão acordados, e serviu de inspiração para o álbum. Ana Matos Fernandes, ou Capicua, contava a história ao Público, que a 28 de fevereiro de 2014 lhe entregava a capa do Ípsilon. O título: “Peixe dentro de água”. A fábula: uma sereia calçada porque “só uma sereia louca vai querer sapatos”. Uma cabeça com cauda fora do seu habitat natural a agitar as águas do rap, da poesia, da música portuguesa e do debate feminista.
O álbum chegaria pouco mais de uma semana depois, a 10 de março. Está por isso a fazer dez anos de velocidade furiosa. Se há música que precisa de amadurecer no consciente colectivo, este não foi um desses casos. Recebido como um clássico instantâneo, impôs Capicua como voz e caligrafia essenciais de um país musical e cultural não só a viver uma transição digital, que permitiu enfim a explosão anunciada do hip-hop, como o acordar para debates incontornáveis sobre feminismo, racialidade e desigualdade sistémica.
“Pior do que o meu canto há-de ser o meu silêncio”, diagnosticava na canção homónima. Um grito mudo, com produção a roçar o trip hop de DJ Ride, a servir de guia espiritual para o álbum. “Sua voz era livre como ela não era/Como sempre quisera que o seu corpo fosse/E por cantar o sonho e a sua quimera/Era para as almas como um cúmplice”, soltava a consciência.
“MC militante” era uma académica do rap, com escola no territorialismo portuense (Dealema, Mind da Gap, Matozoo, as batalhas de rimas do Hard Club) e no ensino superior (licenciou-se em Sociologia no ISCTE e fez o doutoramento em Geografia Humana em Barcelona). Até para o jogo de cintura do hip-hop, a sua escrita era avançada mas enquanto a maioria dos pares optava por estilos como o rap de punchline ou de egotrip, as suas preocupaçōes eram conscientemente observadoras e politizadas.
Álbum de vinhetas do quotidiano cheias de gente dentro, a alma portuense não a impediu de fotografar A Mulher do Cacilheiro (“Mão gretada da lixívia/Pele negra, cabelo curto/Saudade de Cabo Verde/Vontade de um mundo justo”), escrita a convite do sociólogo Boaventura Sousa Santos para um espectáculo sobre o pós-colonialismo - Ana Fernandes viveu vários anos em Lisboa. A poesia de Capicua deitava os olhos nas ruas mas tinha o pensamento dos livros - profundidade, rigor e arquitectura - que não só a estabeleceram como a rapper portuguesa mais importante e respeitada, como a dilataram a outros circuitos (e atraíram ouvidos exteriores para o hip hop), como ainda amplificaram o discurso a outras áreas do pensamento e discussão.
A fantasia de sereia não deixava de parte as mulheres esquecidas, sem nome, rosto ou cumprimento, como a do Cacilheiro (“E entre toda aquela gente/Ela é só mais uma preta/Só mais uma imigrante/Empregada da limpeza), a mulher que se recusa a cumprir “a puta da expectativa” (Somos o fruto da cultura que nos tolhe/Que nos escraviza p’la expectativa que escolhe/Impor em nossos corpos tortos para caber num molde/Impor em nossos sonhos mortos para servir a prole”) de Alfazema, a “menina dos olhos tristes”, descrita por Reinaldo Ferreira e cantada por Gisela João, ou a mulher “cristalina” e “forte”, que faz mover os moínhos de Líquida. Ou ainda na dor carregada por Aline Frazão em Lupa. Feminista e feminino.
“Porte de mulher do norte, forte ar de respeito/Jeito de quem traça a eito, comanda a valsa/Feito de ter graça, raça é o conceito”, fixava em Mão Pesada, uma das mais pujantes de Sereia Louca. Para trás, havia um prelúdio de aprovação do círculo do rap português com duas mixtapes e um álbum, inundados por pregōes feministas. A inversão de papéis pode ser testemunhada em Lingerie, da mixtape Capicua Goes Preemo: “Para rimares ao meu ouvido/Querido tens de ser escolhido a dedo/Com critério porque é sério tipo entrevista de emprego/O critério é um mistério, no rap tem de haver química”, era a roupa interior do fato desenhado por DJ Premier. “Comandante da guerrilha cor-de-rosa”, intitulava-se em Maria Capaz, a Torre dos Clérigos da paridade, do álbum de estreia de 2012 (ed. Optimus Discos) - “esta merda é toda minha/Esta terra ainda não tinha/Uma MC de jeito/Virei abelha rainha” - adoptada para baptizar a plataforma feminista Capazes, criada pelas personalidades televisivas Iva Domingues e Rita Ferro Rodrigues.
Nos anos 90, as Djamal tinham gravado o seminal Abram Espaço, primeiro álbum de rap de um colectivo feminino em Portugal. Em 2008, Dama Bete editava pela Universal De Igual para Igual, mais próximo da estirpe inglesa de Lady Sovereign do que das habituais fundaçōes afro-americanas. Embora selados por multinacionais, nenhum deles teve impacto suficiente para fazer escola. Capicua foi a primeira a fazer das paredes janelas, apesar de o seu reconhecimento ter partido de dentro para fora do hip hop por força da complexidade dos temas e do manejo dos versos.
Em ano de grande fulgor da música portuguesa, com álbuns de 5-30, B Fachada, Batida, Black Bombaim, Capitão Fausto, D’Alva, Dead Combo, The Legendary Tigerman, Mão Morta, Sensible Soccers e Throes + The Shine, Capicua destacava-se por ser uma pedrada no charco e uma figura de corpo inteiro que não deixava quaisquer dúvidas sobre a missão. ”Sou líquida, e nasci para ser livre/não há vidro que me prive, nem o céu é o limite”, afirmava em Líquida.
Ironicamente, seria a lúdica e festiva Vayorken (Nova Iorque dito ao contrário) a fazer a festa nas bocas do povo. “A gente diverte-se imenso”, reconhecia sobre um colchão instrumental de Miami Bass, nostálgico e evocativo de memórias como o brinc dance (break dance) ou Jane Fonda. Um raio de sol num dia nublado que faz do medo coragem e da vulnerabilidade a força de um disco sólido, inteligente e pensado em andamento. Porque apesar de Capicua ser nova para muita gente, sobretudo fora dos eixos do rap, Sereia Louca vem à superfície na casa dos trinta, assaltado por dúvidas, questōes existenciais de aceitação e receios assumidos.
Capicua não soube apenas expor anseios universais como contar uma história autobiográfica, partilhada por muita gente. Se em 2014, Sereia Louca serviu de referência para a discussão urgente e necessária sobre o patriarcado, dez anos depois a sua importância é comparável à de uma Maria Teresa Horta, pelo menos no espaço da música popular. Que a importância do rap para as geraçōes nascentes, para muitos um primeiro contacto com a poesia, só robusteceu.
Aclamado desde o berço, e os vídeos de André Tentugal para Sereia Louca e Vasco Mendes para Mão Pesada, foram decisivos para a leitura realista da fantasia, foi Álbum do Ano na Mesa de Mistura, foi o sexto melhor álbum de 2014 na selecção mista do Ípsilon, recebeu cinco estrelas do Blitz, e comentários como “há muito que não se ouvia um disco assim” no Jornal de Negócios.
O teste do algodão da capacidade de compreensão talvez estivesse na extensão acústica de Sereia Louca, evocativa de clássicos como o MTV Unplugged de Lauryn Hill (como em Casa No Campo) ou de deuses terrestres como Chico Buarque, Sérgio Godinho e Elis Regina. Era a mesma Capicua, sensível e imutável, vestida com uma outra roupagem. O fato pop/rock assentou-lhe bem em Medo do Medo ou na nervosa Jugular, com os They’re Heading West (Francisca Cortesão, João Correia, Mariana Ricardo e Sérgio Nascimento).
As “coisas estranhas ao ouvido” tinham de ser ditas. Uma “mulher balzaquiana” tirou do peito inquietaçōes seculares que graças à contundência e afecto dos escritos se tornaram causa colectiva. Um dos álbuns portugueses mais importantes do século digital.
Sereia Louca foi editado a 10 de março de 2014 pela NorteSul. Tem instrumentais de Serial, DJ Ride, Conductor, Stereossauro, Sam The Kid e Xeg, além do parceiro habitual D-One. Participam músicos como Pedro Geraldes (Linda Martini), Miguel Ferreira (Clã), Zé Nando Pimenta (editora Meifumado) e Mistah Isaac. Gisela João, Aline Frazão, a rapper M7 (também conhecida como Beatriz Gosta) e Tiago Barbosa são as vozes convidadas. Um ano depois, chegaria Medusa com remisturas de Sereia Louca.