X-Wife - Feeding The Machine
João Vieira vivia em Londres onde organizava as festas Club Kitten com três amigos. Era promotor e DJ. Todas as semanas, recebiam bandas e DJs. Em paralelo, tinha uma banda de glam rock os Centerfold, “com influências de David Bowie, Roxy Music, Stooges e [do movimento] glam”. Era a época das guerras alimentadas pelos Oasis contra os Blur - que após The Great Escape se desmarcaram do movimento -, dos Suede, dos Pulp, dos Supergrass e dos Charlatans, ou do confronto semanal entre o NME e o Melody Maker pela melhor banda da próxima semana. Lembram-se dos Gay Dad? Foram um desses casos.
A pinta andrógina leva-o a entrar em Velvet Goldmine, de Todd Haynes. O filme efabula um ícone incapaz de lidar com a fama que decide forjar a sua morte. Ziggy Stardust? David Bowie não aceitou participar mas está por toda a parte. A começar pelo título, resgatado a uma canção das sessōes de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Ainda não chegara a vez dos Strokes e dos White Stripes, mas nomes como os Felix Da Housecat e Miss Kittin, ou seja a célula do electroclash, começavam a romper com a normatividade do house 4x4 e a trazer visco punk para a pista.
Em Inglaterra, foi exposto a muita da música que haveria de alimentar os X-Wife. Uma dieta rica em new wave e pós-punk. Discos de Gang of Four, Talking Heads, Magazine e Devo quando “para teres uma ideia, os singles 7’’ só custavam uma libra”. A colecção do DJ Kitten engrossa e valoriza ao ritmo de certificados de aforro. Morava na mesma rua de Erol Alkan (DJ do clube londrino Trash e futuro produtor de bandas como Late of the Pier, Long Blonde, The Killers, Duran Duran e Ride, além de remisturador profícuo) com quem “de vez em quando tomava o pequeno-almoço e trocava ideias”. Chega a trabalhar na Tower Records onde se recorda de avistar Donna Matthews, da banda-sensação de meados dos 90 Elastica, a curtir o delirante The Teaches of Peaches de Peaches. “Chamou-me a atenção e fui logo ouvir. Tanto que no Club Kitten começámos logo a misturar parte mais rockeira com Peaches e Chicks On Speed que se estavam a descobrir. Aquele primeiro álbum do Felix Da Housecat é que veio espoletar esta cena toda do electroclash”.
Quando volta ao Porto em 2001, traz a mala carregada de discos e a cabeça cheia de ideias. O Club Kitten muda-se para o Triplex, na Avenida da Boavista. Como DJ, passava “desde os Liars, à Peaches e ao XTRMNTR dos Primal Scream que na altura foi muito importante” para a sintonia entre rock e máquina. Os X-Wife surgem como um braço das festas. “Foi a minha terceira banda. Antes de ir para Inglaterra, tive uma primeira que chegou a ir ao Termómetro Unplugged e fez furor nesse concerto”, recorda.
Para trás, no entanto, há uma pré-história de educação musical e auto-reconhecimento da personalidade, sempre relacionada com a música. O mais novo de quatro irmãos, João Vieira é cunhado de Henrique Oliveira, guitarrista dos Taxi na era de Chiclete e Cairo. Ainda na escola primária, já via concertos da banda e dos conterrâneos Trabalhadores do Comércio. “Era uma excitação ver os Taxi em número um do top na televisão”. Para ajudar à festa, a namorada do irmão trabalhava na [loja] Vadeca [pertencente à Valentim de Carvalho]. “Tinha uma grande colecção de discos e eu ficava fascinado a olhar para aquelas capas”. É nessa altura que descobre David Bowie, por quem nunca perde o fascínio, Lou Reed, Ramones, Joy Division, Pretenders, The Damned e os Sex Pistols, em cassete. “Gravava muitas mixtapes para muita gente na adolescência. E passava música numa ou outra festinha de garagem”. António Variaçōes, GNR, Heróis do Mar e Lena D’Água também o apanharam na curva da adolescência. “A música portuguesa era vivida de forma muito intensa”, lembra.
A João Vieira juntam-se Fernando Sousa, que conhecia de outra banda, e Rui Maia, de quem se recorda de topar o estilo n’O Meu Mercedes é maior que o Teu. “Ele tinha uns óculos meio Jarvis Cocker. Fui falar com ele. Mais do que instrumentistas, eu andava à procura de pessoas que partilhassem os mesmos gostos musicais”, conta. Vieira fez uma compilação “com cenas tipo Stooges e Primal Scream” para indicar o caminho pretendido. Mostrou ao futuro dono da casa das máquinas as cançōes ainda em esqueleto, só com a guitarra acústica, e pouco tempo depois os X-Wife estão a ensaiar na sala de ensaio de Rui Maia. “Não queria uma banda convencional com baterista. Queríamos furar e ir por outros caminhos comum som mais potente e abrasivo. Os Suicide eram uma referência importante”, reaviva.
No teatro dos acontecimentos, tudo acontece no tempo certo. O Club Kitten traz a música nova do momento para as pistas e os X-Wife fazem em Portugal o mesmo que Rapture, Liars ou Radio 4 em Nova Iorque. Para se ter uma ideia, o profético Losing My Edge, primeiro single dos LCD Soundsystem editado em julho de 2002, tem impacto na escala musical de Richter muito menor do que House of Jealous Lovers, Mr. You’re On Fire ou o amnesiado Dance To The Underground. O crónico atraso cultural - que dez anos antes trai bandas como os LX-90, demasiado avançadas para Portugal, mas já atrasadas para apanhar o comboio Madchester - é desmentido. As noites Club Kitten são de loucos e a banda rapidamente tem cançōes para fazer transpirar as paredes dos clubes e gravar.
“Tinha acesso à informação”, explica. “Ainda não havia redes sociais nem sequer MySpace, mas lembro-me de ver a Peaches com o Gonzales em Paris em 2001. Viajava muito para ver concertos. Ia a clubes. Lia. Assinava o NME. Estava a tentar que a minha vida em Portugal não fosse muito diferente da que era em Londres”. A sede de descoberta “fez a diferença”, assume. “Tudo aconteceu de forma bastante rápida e inocente, quer para os X-Wife, quer para o Club Kitten. Era um capricho meu, ter uma noite num clube para 50 pessoas a passar música diferente da que se ouvia e fazer uma banda arty em que tocássemos em sítios underground também para 50 ou 60 pessoas. Nunca imaginámos poder tocar em festivais, o que acabou por acontecer. Foi tudo uma surpresa. Não tínhamos ambiçōes de querer crescer. Era pelo divertimento”.
Tudo fluía. O Club Kitten “abriu portas”, seduziu novo público e influenciou preferências em aberto. Podia não ter sido assim mas a química entre João Vieira, Fernando Sousa e Rui Maia rapidamente deu frutos. Em 2002 já davam concertos e no ano seguinte chega o EP Rock In Rio - uma brincadeira com a grandeza inalcançável do festival para uma banda underground, imediatamente antes de ser anunciada a chegada a Lisboa no ano seguinte - editado pela NorteSul. A canção titular não deixa dúvidas. Rock produzido com sintetizadores, sexy, refrescante e sujo, para consumo urgente. A partir do Porto, os X-Wife estão a par do último grito de Nova Iorque. Com Eno, uma homenagem aos primeiros álbuns do mestre Brian Eno, na forma como João Vieira trabalhou a voz, e We Are forma-se o trio de ataque do grupo. Estreiam-se em Lisboa na ZDB e vão ao palco principal de Paredes de Coura.
A imprensa recebe-os com grande entusiasmo e vê neles um paralelo incomum com o que se passa no circuito internacional. Uma espécie de jangada. O burburinho cresce. E a 10 de janeiro, na alvorada de 2004, sai Feeding The Machine, o álbum certo no momento indicado. Uma cascata de referências e pistas, oxigenadas em cançōes rápidas e pulsantes depois de filtradas por ouvidos de DJ, qual karaoke de originais. Ou como reciclar uma generosa colecção de discos em vivacidade criativa com uma ideia própria, apesar de paralela à de outros primos afastados na geografia mas próximos no gosto. Porque, em Portugal, só os Loosers (mais parecidos com os Liars, liderados pelo vimaranense Tiago Miranda, ex-Pop Dell’Arte e, tal como João Vieira, DJ) e posteriormente os Vicious 5 (semelhantes aos The Hives, facção arte contemporânea pintada com óleo Shell) estavam num comprimento de onda parecido.
“Foi tudo muito rápido. Não queríamos perder a força espontånea das cançōes. A energia da sala de ensaio”, recupera João Vieira. Feeding The Machine capta a inocência irrecuperável das experiências inaugurais quando a cabeça está limpa de cálculos e segundas intençōes. Sem truques, artifícios ou máscaras. São apenas três homens a fazer da garagem o recreio da imaginação moldada por anos a fazer dos discos almoço e jantar. Com um punhado de cançōes efervescentes a activar um disco destravado que nada deve ao que se fazia na época.
“Estávamos à altura do que se fazia lá fora“, concorda João Vieira. “Como andava sempre a viajar, conheci o James Murphy no Primavera Sound em Barcelona. Dei-lhe o nosso CD e ele não ligou muito. Passado um ano, veio a Paredes de Coura e dei-lhe o nosso vinil. Ele agradeceu muito. Não o quis chatear mas deixei-lhe um email e disse-lhe: ‘se quiseres, contacta-nos’. E ele contactou-nos a pedir o CD porque na DFA todos queriam ouvir. Disse ao Rui: temos que ir já para Nova Iorque. E fomos. Infelizmente, ele perdeu o metro para o nosso concerto. Fiquei de rastos”, confessa. “Esta história é verdadeira. Tinha marcado vários concertos para ele nos ver. Um deles no CBGBs”.
A hipótese de assinar pela DFA, casa de Rapture e de uns LCD Soundsystem em plena infiltração, perdeu-se mas não por falta de tentativa ou complexo de inferioridade. “Nós fomos logo e as coisas até nos correram bem. A blogosfera estava connosco (um deles o Stereogum). Saímos num blogue, chegámos logo à rádio e às lojas de música. As coisas não se diluíam. Havia uma comunidade mais cúmplice”, descreve. “Entretanto, os LCD ficaram gigantes, nós também já tínhamos o disco editado. Nós somos portugueses e isso complica em termos logísticos. A DFA era aquela comunidade de Brooklyn e ir para Nova Iorque é…caro”., explica.
Vieira recorda a epifania ao ouvir House of Jealous Lovers, dos The Rapture, alguns meses antes, “tal como o Losing My Edge dos LCD Soundsystem também me marcou. Estávamos todos a surgir ao mesmo tempo, mas as minhas referências estavam mais atrás”, recua. A comparação fez-se ao nível dos agudos que a passagem do tempo roubou à voz de João Vieira. Sim, ouvia-se rock nas pistas. Algo impensável hoje em dias. As guitarras dançavam com as máquinas. As noites eram físicas e irreflectidas porque “as pessoas queriam era divertir-se”. E, insistindo na ideia, o Club Kitten foi determinante para os X-Wife. “Foi realmente isso. Era muito fácil passar da electrónica para o rock. Havia bandas chave como os LCD Soundsystem, os Rapture e os Primal Scream. Para quem vinha de Gang of Four, era muito fácil passar para a Peaches. Os 2 Many DJs também foram muito importantes. Os sets deles foram pioneiros”.
E há a capa, assinada também ela por João Vieira, formado em design gráfico em Londres. “Queria fazer uma capa intemporal. Por isso, optei por uma linha gráfica mais próxima da ilustração. Queria que tivesse o amarelo e o preto porque sempre associei o amarelo a um lado mais punk DIY de fanzine. Sempre achei que numa capa com duas cores, o amarelo sobressaía entre os outros discos”. A máquina a irromper na capa é a metáfora da caixa de ritmos usada não como substituto da bateria mas como pulsar rítmico próprio. “Alimentar a máquina, mas a máquina somos nós. O nosso cérebro, alimentado com criatividade. O título Feeding The Machine vem daí”.
Perdeu-se o lugar na carruagem mas não a viagem de comboio. Vinte anos depois, a autenticidade e o viço de Feeding The Machine ofuscam o ar natural de época. “Gosto muito que o primeiro disco tenha saído assim. Está cheio de coisas a acontecer e traz aquela energia toda de quem tem a vida toda pela frente. Estávamos a fazer uma coisa que era muito actual e ouvíamos. A urgência do-it-yourself do momento. Não pensar demasiado”. A distância dos centros de decisão não permitiu aos X-Wife inserirem-se numa cena internacional mas Feeding The Machine foi capaz de alimentar um sonho com legitimidade e intrometer uma identidade palpitante.
Feeding The Machine foi editado pela NorteSul em CD e pela Lux Records em vinil. Em 2019, os X-Wife celebraram os 15 anos de Feeding The Machine numa digressão de clubes. A história do álbum também pode ser ouvida no programa Defeitos Especiais da Antena 3. Um mini-documentário sobre o álbum está em preparação