Waldemar Bastos - Pretaluz
Há duas histórias dentro da história de Pretaluz, agora reeditado em vinil pela Luaka Bop no 25º aniversário. A nascente é a de Waldemar Bastos, angolano nascido em 1954 perto do Rio Congo, filho de enfermeiro que devido ao trânsito profissional do pai, vive entre Mbanza Kongo, Luanda, Cabinda e o Huambo - lugares onde absorve a cultura que há-de definir a sua identidade musical. A seguir à independência, em 11 de novembro de 1975, Bastos exilou-se em Portugal para escapar à guerra civil de Angola. Na década de 80, chega a viver em França mas regressa e é por cá que se fixa.
Em 1992, numa das visitas regulares a Lisboa, David Byrne apaixona-se pela capa de Angola Minha Namorada e, depois de comprar o álbum, enamora-se pela canção, Ngana, gravada em 1982. A relação entre o músico Waldemar Bastos e o editor-olheiro David Byrne é a poente que terá como desenlace a assinatura de um contrato com a Luaka Bop, e a gravação de Pretaluz, produzido por Arto Lindsay, em 1998.
Dizia Angélique Kidjo que quando ouviu Once in a Lifetime, dos Talking Heads, pela primeira vez, soube que era uma canção africana. A eterna paixão de David Byrne por geografias periféricas, em particular pelo continente africano, teve em Remain in Light o Santo Graal, mas nem se esgotou aí (como a solo em Songs From The Catherine Wheel ou no seminal exercício futurista de corte e colagem My Life In The Bush of Ghosts, com Brian Eno), nem se fixou num continente. O segundo álbum a solo Rei Momo, de 1989, assumia o romance com a latinidade, já conhecida dos Talking Heads em singles como Blind, prescrutando as culturas de Cuba, República Dominicana, Porto Rico, Colômbia e Brasil.
Essa vem a ser a “agenda” da Luaka Bop, editora fundada por David Byrne no ano do fim dos Talking Heads (1988), que entra em cena quando este assina a solo pela Warner. Embora associada ao rótulo World Music, selado pela Real World de Peter Gabriel, Byrne prefere chamar-lhe “pop contemporânea”. E o tempo dar-lhe-á razão. Ao longo da sua existência, a editora mostra ao mundo nomes como Tom Zé, Zap Mama, William Onyeabor e Susana Baca, de quem agora reedita em vinil Espíritu Vivo, do mesmo ano de Pretaluz.
Na década de 90, Byrne visiona a renovação do fado e aposta em Paulo Bragança. Amai é o primeiro álbum a sair de Lisboa para os escritórios de Nova Iorque, e daí para todo o mundo, mas a oportunidade de internacionalização é traída pelos excessos do fadista. Pretaluz é o senhor que se segue e o último de origem portuguesa a sair pela Luka Bop.
Waldemar Bastos com David Byrne (foto do Público)
Gravado em Nova Iorque com uma banda de músicos angolanos e portugueses, com o vanguardista Arto Lindsay ao leme, é uma carta de amor a Angola em pleno conflito armado entre o MPLA e a UNITA, que tanto sofre por dentro, como vê claridade no fim dos canhōes - a guerra civil haveria de terminar em 2002, embora os problemas políticos e sociais persistam até hoje.
“Para quê tanta dor, para quê tanto ódio?Se somos irmãos, e temos que dar as mãos”, são os primeiros versos do álbum na dolorosa Sofrimento. É uma morna afadistada, lindíssima, que abre o coração para não mais o trancar. “A nossa terra está a morrer”, canta com o peito a sangrar. Mas na mesma letra, Waldemar Bastos deixa um recado de esperança: “Angola é tão grande, tão rica e tão linda que dá para todos nós”.
E é este o fio condutor de Pretaluz, álbum de forte carga política, visto do lado do povo. Waldemar Bastos imagina um futuro para além das balas - “A minha terra é tão bela”, descreve em Querida Angola - mas não perde a lucidez. “Tanta mentira, falta de pão, amor e alegria”, chora na mesma canção. É Preta a realidade mas é Luz a alternativa.
Figura com histórico de resistência, foi preso pela PIDE, em 1972, aos dezassete anos de idade, sob acusação de “actividades subversivas e mau comportamento”, pode ler-se no obituário publicado pelo Jornal de Angola aquando do desaparecimento em 2020. “Os pais presos e os irmãos na frente de combate, durante o recuo para Luanda em consequência da guerra no Huambo, e o apelo da avô, mãe do pai, autora dos versos “Filho não fala política, cuidado onde vais...”, foram o argumento de Velha Chica, uma das cançōes mais emblemáticas, editada no inaugural Estamos juntos (1983).
“Waldemar Bastos gravou na memória as rusgas, prisões e deportações dos nacionalistas angolanos, factos que despertaram nele, enquanto compositor, um forte sentimento de pertença aos pressupostos culturais da angolanidade e de emancipação à cultura portuguesa”, recorda ainda o jornal.
Pretaluz é de uma pureza quase ingénua como na lindíssima Morro do Kussava (“o mundo é tão bonito”) ou no semba de Kurigota. A beleza destas cançōes está na simplicidade. As palavras não falam sozinhas e no caso de Waldemar Bastos são a arma escolhida para afrontar as atrocidades cometidas no seu país (“Eu não quero ouvir falar mais da guerra”, é uma das moniçōes pela paz).
É também um exercício de transatlanticismo com notas de fado (Sofrimento, Muxima) - Waldemar Bastos foi o único não fadista a cantar na cerimónia de transladação do corpo de Amália Rodrigues, de quem era amigo - ou do Brasil (Querida Angola), com pés de dança como Kuribota e Morro de Kussava.
É no estandarte de Querida Angola que deixa o derradeiro apelo: “Angola é do povo”. Ainda hoje, uma declaração questionável mas em Waldemar Bastos o amor e a coragem são mais fortes que a resignação e o luto.
Pretaluz foi editado pela Luaka Bop em março de 1998 e é agora reeditado em vinil. Pode ser ouvido nas plataformas digitais e no Bandcamp. Waldemar Bastos morreu em 2020