Três Tristes Tigres - Guia Espiritual
Onze anos antes de Guia Espiritual, Alexandre Soares tinha dedilhado os quatro acordes de Dunas num ápice. “Para chegar aqueles três minutos, é preciso um ano de trabalho”, explicou repetidas vezes sobre o processo de composição do clássico dos GNR.
O prefácio de Zap Canal não deve ter sido muito diferente. É uma canção clara, de estrutura simples e refrão orelhudo. Os “anos 90 bem medidos” são imediatamente reconhecíveis. Não deve haver verso tão figurativo da época como esse. Perdura até hoje. O teste do tempo foi vencido. E, no entanto, a proximidade displicente arranca-nos para uma fuligem clandestina entre os acordes de guitarra. Para ter vindo à superfície, foi preciso mergulhar a grande profundidade. Porque o segundo conto dos Três Tristes Tigres define-se pela coexistência entre o familiar e o experimental. Pop sim, mas liquida. Uma “espécie de comércio”, como deixavam claro em Espécie.
É um álbum em que o processo explica o resultado e não o inverso, definido pelas texturas sonoras, a singularidade de Ana Deus e a química com a poética sugestiva de Regina Guimarães. Zap Canal é um acidente feliz na sua investida pop sem freio, mas não um acaso. No magnífico Partes Sensíveis (1993), quando os Três eram as Três (a vocalista, a poetisa e a pianista de jazz ex-Reportér Estrábico Paula Sousa), o primeiro rugido era Mundo a Meus Pés, single igualmente transversal, como prova a escolha para o genérico da telenovela da TVI Mundo Meu. O solo de guitarra já era de Alexandre Soares, que acabaria por se tornar peça-chave.
O cadastro radiotelevisivo é consequência e não causa. Guia Espiritual é uma estrada fora como a de Jack Kerouack. A partida é o motivo, a chegada é quase sempre o inesperado. E apesar de alguma traça da época, como os rasgos de jungle em Xmas, ou de breakbeat em Ruído Rosa, presciente de Kid A dos Radiohead na simbiose entre máquina e pulso humano, é um álbum ímpar, aqui ou em qualquer parte.
O amigo nortenho de Sex Symbol dos Pop Dell’Arte (curiosidades: Ana Deus entra no vídeo de My Funny Ana Lana e Paulo Monteiro, ex-Croix Sante e guitarrista dos Pop Dell’Arte é o autor das ilustraçōes de Guia Espiritual), praticante da pop livre (Free Pop) apregoada por João Peste, à maneira portuense. Sex Symbol foi eleito Álbum do Ano pelo DN em 1995 e Guia Espiritual pelo DN e Blitz em 1996.
Um mundo de aventuras e um laboratório de experiências em que Zap Canal só não está orfão porque da mesma maneira que o alinhamento testa os limites do posto de escuta com os saltos no desconhecido de Xmas e Ruído Rosa, despede-se com a simplicidade de Colchão de Água (delícia para voz sussurrada, uma acústica e algum tricot eléctrico por baixo) e a canção titular, quase nua.
Nas coisas que fascinam dos Três Tristes Tigres, Há um Olho da Rua presciente dos blues de mau olhado dos Osso Vaidoso (a banda situada entre o vai e vem dos 3TT) e a perfeita Anormal (“sou anormal/para o bem/e para o mal”), o confessionário de um álbum que nunca se sabe por onde vai, que não vai por aí, apesar de saber o caminho mais curto até à Foz.
Guia Espiritual foi editado em 1996 pela EMI/VC e está disponível nas plataformas digitais. Os Três Tristes Tigres regressaram em 2017 aos palcos e em 2020 gravaram o quarto álbum Mínima Luz. Nas últimas semanas, revelaram o single Animália que fará parte do álbum Atlas a editar em 2024