Slow J - You Are Forgiven
Sem aviso de recepção, You Are Forgiven chegou na noite de 20 de setembro de 2019 quando, por exemplo, à mesma hora, uma fracção do público potencial de Slow J vibrava com o concerto de Common no Iminente em Monsanto. A intenção de seduzir o ouvinte a ouvi-lo de um trago seguira a estratégia frutífera de Kanye West em Yeezus e de Beyoncé no álbum homónimo, ambos em 2013. Nos meses anteriores, só se ouvira o restolho do silêncio. Nem um concerto, ou outro sinal de vida. Apenas horas em estúdio e sobretudo um debate interno entre Slow J e João Batista Coelho.
Em dois anos e meio de separação entre o estrondo de The Art of Slowing Down e You Are Forgiven, tudo mudara: a aclamação, os quilómetros de estrada e a responsabilidade sobre os ombros. “Johnny boy onde é que estás agora?/Tu só querias ser feliz/Tanta coisa que tu tens agora/Diz ao mundo se estás triste/Deixa o mundo saber disso/E essa dor, passar a vida a procurar/A ferida por sarar, cá dentro/Eu não vou passar daqui sem me encontrar”, confessava em Onde é que Estás?. Supōe-se um homem a bater com a cabeça nas paredes, em longos monólogos com a solidão, após intermináveis insónias.
Parecia que o mundo se tinha tornado maior que o sonho alguma vez imaginado. E com ele chegara o reverso da medalha. A exaustão emocional, a sombra da expectativa e a dúvida existencial. Também Sonhar, simbolicamente a porta de entrada em You Are Forgiven, é elucidativa. “Minha fama quis ver-me a parar de sonhar/Confundindo o que eu queria alcançar/Sucesso 'tá a querer me convencer de que antes eu sonhava alto demais”. Para quem vinha de subir tantos degraus numa só passada, a descida à terra de Slow J é de uma tanslucidez desarmante. Talvez inesperado para quem não leu as entrelinhas, mas os sinais de cansaço já eram enunciados pelo primeiro avanço Teu Eternamente, ainda no final de 2018. “E não quero falar com ninguém, só quero ’tar sozinho/Fiz tanta estrada que esqueci o meu caminho”, reconhecia.
You Are Forgiven é filho do complexo de culpa que o acompanhou desde criança. E dos dilemas enfrentados no rescaldo do triunfo glorioso de The Art of Slowing Down, clássico instantâneo e absoluto, reconhecido como tal por público e crítica, como nem sempre acontece. Com inteligência, Slow J não guardou as contrariedades numa cave. Fez da radiografia pretexto para a cura, descarregando-a para o ambiente de trabalho.
Aos 35 segundos do vídeo de Lágrimas, a tragédia pessoal é assumida sem sofismas. “Eu e a minha namorada estávamos à espera de ser pais pela primeira vez. E tivemos de lidar com a perda dessa gravidez. Passar por um aborto espontâneo acontece a muita gente mas pouco se fala sobre isso”, explicava sobre a “peça central” do álbum. O resto é dito por uma canção-espada: “tirava-te a dor e ficava eu com ela/eu dava-te a flor e ficava com o espinho/apertava e com o sangue eu pintava uma tela”. O espinho desencravado, isto é “a vida lucrativa” de pai chegaria um ano depois no single individual Nada a Esconder. Por isso, You Are Forgiven é dor que conforta. Exilado na privacidade, Slow J resguarda-se da embriaguez do êxito e enfrenta um período negro. Uma heresia para os manuais de gestão. Um passo corajoso nos livros de arte, preenchido com vinhetas do real. Um manual de voo numa vida tornada menos banal.
Dizia Kendrick Lamar sobre o avassalador Good Kid, M.A.A.D. City, que desejava “fazer parte do jogo”, e como tal, tinha aceite as regras para então poder fazer as suas em To Pimp a Butterfly. Podia dizer-se o mesmo de Kanye West na comparação entre The College Dropout e Late Registration, com os posteriores Graduation e 808s & Heartbreak. O lamento robotizado de Onde é que estás? evoca o Kanye West de coração partido a usar o autotune como amplificador estético da infelicidade (e não como disfarce das insuficiências vocais).
The Art of Slowing Down não deixara dúvidas quanto à excepcionalidade da figura na capacidade de beber dos grandes mestres para criar um idioma próprio, feito de muitas janelas abertas pelo hip-hop contemporâneo, uma escrita com impressão digital e um ética inabalável, digna de Sam The Kid, José Afonso ou José Mário Branco. Slow J mal chegou a ser aprendiz, saltou de um ápice para o lugar de feiticeiro, tornando-se referencial não apenas no círculo crescente do hip-hop mas para a idade digital da música portuguesa - as duas MEO Arena esgotadas não mentem.
The Art of Slowing Down era todo ele ambição e afirmação (“não quero uma boa vida, eu quero uma vida boa/Nada do que que a minha sina diz foi escrito à toa”, anunciava em Vida Boa). Slow J impunha um som urgente, uma banda sonora da rua do hip-hop para fora dos seus limites, e um discurso de utopia possível. A fábula de um rapaz fechado no quarto a conquistar o mundo. O que hoje parece um plano difícil de provar, sem uma minuciosa estratégia de marketing para captar a atenção do algoritmo, foi um círculo perfeito na vida do sadino: o talento, a personalidade, a música.
You Are Forgiven contraria a teoria da evolução e traz a ressaca para a festa. Segundo os manuais de regras, o abismo podia ser o precipício mas acontece o oposto. Slow J expōe-se como um paciente no consultório sem se furtar às questōes mais delicadas, e olha para os factos não como um episódio separado ou fim de história, mas como parte de uma autobiografia em movimento constante. The Art of Slowing Down era necessário para o seu tempo, You Are Forgiven aceita a passagem do tempo com maturidade precoce e grita por intemporalidade.
Quatro lentos anos depois, o tempo é um algodão infalível da sua importância. The Art of Slowing Down é uma casa aberta com código postal no hip-hop, como fica claro no trap normativo de Pagar as Contas. Em You Are Forgiven, o hip-hop é sobretudo um processo. Por vezes rítmico, por vezes lírico, mas o diálogo é mais amplo. A escolha de Sara Tavares para abrir a sessão na lindíssima Também é Sonhar é o reconhecimento de uma personagem central na geografia da música portuguesa dos últimos trinta anos, compreendida por Slow J como nem sempre foi valorizada na memória coletiva antes da sua perda a 19 de novembro de 2023. “Sou Maria capaz de sonhar/Até à ultima gota/Dou o sangue dos cotas/Se morrer nem me notas”, desprende na doçura de uma presciência pesada.
Em Fam, sequela do exercício de produção em Deepak Looper de Papillon, o semba volta ao piso depois de ser manifesto em Casa de The Art of Slowing Down. O mundo de Slow J podia estar a cair mas a ancestralidade mantinha-se imune às alteraçōes climáticas. Chão firme e inabalável revisitado em Tata, de Afro Fado. A guitarra portuguesa de Lágrimas, e o desfado nas cordas e nos tambores de Só Queria Sorrir são parágrafos da história contada no terceiro álbum.
Todas as marcas do guião identitário de Afro Fado já estavam soltos por The Art of Slowing Down e You Are Forgiven. Quando o mundo aceitava a economia de atenção como uma deriva do capitalismo individualista, o segundo álbum de Slow J expunha uma intimidade violenta para reivindicar paz e reclusão. Um acto de risco mas cedo se percebeu que a privacidade era um bem essencial à sanidade de João Batista Coelho e que, por outro lado, o segredo era uma das almas da sua fecundidade.
Where U @, primeiro sinal de Afro Fado há pouco mais de um ano, usava a expectativa como assunto: “Where you at/Where you been/'Tá a bater saudade/Do novo hino/Onde é que tens andado/Eu 'tou na minha/Eles querem novidades/'Tão-me a ligar”. You Are Forgiven é o irmão do meio. Sofrido, visceral, tirado a ferros da amargura, com pequenas fontes luminosas nas finais Muros e Silêncio. A transparência é a textura da sua compreensão. O tempo a argamassa de uma construção que tem em You Are Forgiven um sólido monumento à fragilidade.
You Are Forgiven foi editado de forma independente pela Sente Isto apesar da cobiça das multinacionais, e bateu o recorde de álbum mais ouvido nas plataformas digitais em dia de estreia. A pedido de muitas famílias, foi editado em vinil em 2021.