Sérgio Godinho - Pano-Cru
Quando a música viaja no bolso enquanto legenda vertical da espuma dos dias, Sérgio Godinho já organizava as marmitas para a semana em 1978. “Segunda-feira trabalhei de olhos fechados/Na terça-feira acordei impaciente/Na quarta-feira vi os meus braços revoltados/Na quinta-feira lutei com a minha gente/Na sexta-feira soube que ia continuar/No sábado fui à feira do lugar”, eram os versos gesticulantes de A Vida é Feita de Pequenos Nadas, e uma homenagem à canção-calendário do Conjunto António Mafra
“Muito boa noite, senhoras e senhores/Muito boa noite, meninos e meninas/Muito boa noite, Manuéis e Joaquinas/Enfim, boa noite, gente de todas as cores”, era o cartão de visita. Sejam bem-vindos a Pano-Cru, o primeiro álbum do resto da vida de Sérgio Godinho. Por diversos motivos, uma transição. Desde logo do panfletarismo de Os Sobreviventes (1972), Pré-Histórias (1973), À Queima-Roupa (1974) e De Pequenino Se Torce O Destino (1976), quase sempre interpelado por cançōes de coração como O Namoro (escrita por Fausto) ou de olho clínico como Os demónios de Alcácer-Quibir - a tal que questiona a vitimização portuguesa contada nos livros de…História - para um contador de histórias.
Não, SG não se tinha afogado na maré alta só porque a liberdade estava a passar pela avenida. Ainda recentemente afirmava no podcast #NãoPodias que “nada é irreversível”, referindo-se à necessidade de a regar como uma planta e defendê-la dos bichos porque “o fascismo é uma minhoca que se infiltra na maçã”, alerta em Lá Isso é deste mesmo Pano-cru. Chegaria esse megafone ou o “Somos tantos a não ter quase nada/Porque há uns poucos que têm quase tudo”, de A Vida é Feita de Pequenos Nadas, para aclarar que este era o mesmo SG só que com novos golpes de mágica.
Um guionista, cenógrafo e realizador a fazer das cançōes curtas-metragens como na notável 2º Andar, Direito, retrato de um jovem casal na tensão diária do amor, contada por um vizinho. “Há um volte-face nessa canção. Está a ser contada por um narrador que depois se descobre ser um terceiro personagem. A partir daí, o narrador passa a ser eu, eu compositor e autor da canção. A introdução de um elemento inesperado, uma nova personagem, rouba o protagonismo ao casal. Existe um lado ficcional que pode ser cinematográfico”, contava no livro Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa, editado pelo Público.
Experiências anteriores com teatro, ainda no Canadá onde conheceu a futura mulher Sheila, e sobretudo a participação na peça A Mandrágora, de Maquiavel, encenada por Ricardo Pais, em 1975, deixaram marcas no desejo de viver personagens nas cançōes. O Homem Fantasma, por exemplo, “é uma personagem que, de certo modo, antecede o “Casimiro” (de Cuidado com as Imitaçōes), aquela espécie de ‘grilo do Pinóquio”, que desmascara certos podres da sociedade. E é curioso como, às vezes, as coisas estão anos na gaveta e não se perdem”, descreve na biografia musical Retrovisor. Em 2024, diz-nos alguma coisa esta leitura publicada em 2006? “é aquele personagem a contar aquela história daquela maneira. Ele conta a história como um saltimbanco a cantaria, Não é só a visão neutra do Sérgio Godinho. Há um filtro da personagem”, detalha.
Pano-Cru é um regresso ao futuro, assustadoramente próximo do actual quando, em A Vida é Feita de Pequenos Nadas, escreve sobre a lástima de “nada vale protestar /o melhor ainda é ser mudo/isto diz de um gabinete/quem acha que o casse-tête /é a melhor das soluções/para resolver situações delicadas/a vida é feita de pequenos nadas”. Ou, em O Galo é o Dono dos Ovos, sobre o machismo: “O galo é o dono da casa/A galinha, da cozinha/Ou se porta direitinha/Ou apanha com a asa/Que o galo é o dono da casa”. E em tempo de eleiçōes, “há partidos de direita que pōe sempre a bola ao centro/mas quem melhor os fintas/é que vai marcar o tento”. A reflexão política não se dissolveu.
Apesar de O Namoro, Organização Popular e Os Demónios de Alcácer-Quibir, o anterior De Pequenino Se Torce O Destino denotava alguns sinais de falta de frescura. Pano-Cru respira fundo e lembra-se da força. “É um disco em que os arranjos são consequência da contribuiçåo de outros músicos”. Método que a partir daí seria norma como em Coincidências, profundamente inspirado pelo Brasil, Domingo no Mundo, ou nos casos mais recentes de Mútuo Consentimento e Nação Valente. E que já vinha de trás, explicava nessa compilaçåo, só que “assumida de uma maneira mais funda neste disco”. O baixo ficou nas mãos do irmão Paulo (antigo vocalista e baixista dos Pop Five Music Incorporated) e a bateria de Guilherme Inês (futuro músico da Salada de Frutas), a quem foi pedido que tocasse as peles como se fossem percussōes. Instrumentos como o violino de Carlos Zíngaro e o acordeão de Pedro Osório são fulcrais para o romance com a música popular de O Galo é o Dono dos Ovos, uma proto-chula, Lá Isso É (anos mais tarde revista pelos Sitiados), Venho Aqui Falar ou até o baile-espanta-espirítos-no-bosque de O Homem Fantasma. O guarda-roupa musical de Pano-Cru haveria de inspirar bandas como Trovante, Sitiados, Deolinda, Virgem Suta ou Diabo na Cruz e contemporâneos como B Fachada ou Ana Lua Caiano.
A terceira pessoa há-de encarnar de novo na imortal Balada da Rita. “Gosto muito de encarnar personagens, independentemente da minha opinião ser diferente da deles. É uma opção claramente dramatúrgica”, descrevia na biografia. É uma canção assumida no feminino, apesar de ter uma voz masculina na sua versão mais popular. A “Rita, pōe-te em guarda” foi composta para a marcante personagem de Lia Gama no filme Kilas, o Mau da Fita. “Agrada-me essa ambiguidade de cantar na primeira pessoa do feminino. Uma coisa que, curiosamente, foram os brasileiros a fazer, o Caetano, o Chico, mas que não existe muito na música americana ou francesa”, comentava na obra do Pûblico.
E entra o piano com a sua longa cauda. Uma nota em suspenso faz silêncio e muita gente. É O Primeiro Dia, a mais colectiva de todas as memórias de Pano-Cru e talvez de toda a obra de Sérgio Godinho. Um refrão intemporal, unânime e ubíquo em toda a sua conciliação. “Curiosamente, não foi um êxito evidente. Demorou até ser interiorizada”, contava ao Público. SG define-a como “uma canção de ruptura, de repensar as coisas e encontrar uma certa sabedoria para o futuro”. Apesar de lhe ser atribuída a frase Hoje é o primeiro dia do Resto da Minha Vida, ela foi escrita no álbum homónimo, assinado por Rita Lee, apesar de gravado pelos Mutantes em 1972. O “e vem-nos à memória uma frase batida…” é o reconhecer dessa paternidade. “Poderá ser o final de um amor, ou ter interpretaçōes mais latas, o final de um qualquer ciclo”, acrescentava na biografia.
Foi também uma época de mudança de casa. Nas páginas da biografia, Sérgio Godinho recordava que, em 1977, a Sassetti (para a qual tinha gravado os quatro primeiros álbuns) “tinha sido tomada pela comissãlo de trabalhadores. Tinham mais ou menos despedido a administração e estavam em auto-gestão, a qual, infelizmente, era desastrosa (…) A certa altura queriam ver as letras das cançōes antes delas serem gravadas, interferiam de uma forma perfeitamente ridícula. Eu, já com três álbuns editados, sem ter nada para provar, e eles a tentarem estar ao volante. Disse-lhes simpaticamente que não estavamos na Albânia. E eles concordaram. Gravei ainda o De Pequenino se Torce o Destino em Lisboa, e não em Tirana, e pronto, fim de contrato”. A mudança editorial levou-o até à Orfeu do recém-falecido Arnaldo Trindade, casa de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fausto e Vitorino.
“Foi o pior contrato da minha vida”, haveria de reconhecer. "Nessa altura” de “grande instabilidade financeira” em que “não havia sequer a prática de concertos pagos”, SG aceitou uma avença mensal de vinte contos mensais “independentemente do que vendesse”. O contrato foi assinado para Pano-Cru e o sucessor Campolide mas devido a problemas com a Orfeu, acabaram por transitar para a Rádio Triunfo, que se extinguiu, e depois para a Movieplay. “São os únicos discos pelos quais não recebo qualquer percentagem, e mesmo nos direitos de autor há conflitos por resolver”, confessava na biografia.
De uma obra sem peles mortas e com poucas rugas, Pano-Cru é um clássico instantâneo. “Tínhamos saído um pouco da ressaca do pós-PREC. Estava-se num período muito rápido de mudança e havia uma energia criativa à minha volta”, contava no livro do diário. “Havia coisas que se tinham perdido mas, por outro lado, estavam em elaboração outras que, para mim, eram exaltantes, como o facto de poder trabalhar ao vivo com os músicos que eu queria”.
Foi o combustível para digressão Sete Anos de Cançōes, “onde estavam o Zeca, o Fausto e o Vitorino”. 24 concertos por 20 capitais de distrito em “sítios onde não havia nada e nos chegavam a perguntar se íamos tocar variedades”. 46 anos após, parece aberto de fresco. Pano-Cru é um retrovisor para a viagem, se queremos que o futuro seja todo por diante e não uma marcha atroz.
Pano-Cru está disponível em todos os formatos físicos e nas plataformas digitais