Repórter Estrábico - Mouse Music
Os Repórter Estrábico vinham de uma desbandada. Depois de perderem o histórico guitarrista José Ferrão a seguir ao lunático 1 Bigo, o baterista João Bruschy e o DJ e segunda voz Nuno Pires depois de Disco de Prata, a formação encolhia de sexteto para quarteto: Luciano Barbosa (voz), Paulo Lopes (guitarra), Anselmo Canha (baixo) e o ex-GNR Manuel Ribeiro, nas teclas.
Apesar de estrábico, o repórter foi visionário em quase tudo. Transferiu-se do Centro Comercial Dallas para o Centro Comercial Stop no final dos anos 90, quando ainda näo havia salas de ensaios em vez de lojas. Superfícies comerciais decadentes e consumismo eram extremos a tocar-se. O cenário kitsch perfeito para uma banda-personagem servida por um sarcasmo surrealista de linhagem Monty Python, demasiado complexo para a gargalhada de café e para o humor televisivo .
Ainda no final da década de 80, quando os Reportér Estrábico surgiram, ainda com o primeiro vocalista (e artista plástico) António Olaio, descendiam da mesma ordem de desarrumação dos Pop Dell’Arte, Mler Ife Dada ou Ocaso Épico. Eram teatrais e plásticos, como estes. Geraram entusiasmo suficiente para assinar pela Polygram, por quem editaram Uno Dos em 1991, ser capa do Blitz e dar concertos em salas como o Pavilhão Carlos Lopes.
Intitulavam-se “techno pop irónico” mas apesar de terem despontado sensivelmente na mesma altura dos Ena Pá 2000, estes eram muito mais escatológicos e sexualmente provocadores, como bons filhos de Frank Zappa e de uma dialética art rock, apesar de tudo mais próxima do gosto comum do que as experiências laboratoriais dos Reportér Estrábico. Talvez por isso, sempre tiveram o carinho da imprensa, que sempre os observou como um caso ímpar de inventividade, mas não do público. Cada vez menos concertos, vendas reduzidas - Uno Dos esgotou a sua tiragem inicial de duas mil unidades, e não mais foi reposto - e sobretudo o bater com os óculos na parede sem que esta se transformasse num portal. Mais de metade da entrevista a António Pires do Blitz sobre o tridimensional 1 Bigo (1994), era gasta a tentar justificar a falta de carinho do público. Dez anos depois, nada mudara na conversa de Luciano Barbosa com Ana Sousa Dias para a RTP2.
Em Disco de Prata, uma invulgar aproximação ao modelo pop/rock convencional gravada ao vivo em estúdio perante uma plateia de amigos, as últimas palavras, repetidas ao longo de um dub apache, eram “Suzuki, Kawasaki, Yamaha”. Motores, engenhos e máquinas. Reduzidos a quatro, Luciano Barbosa, Paulo Lopes, Anselmo Canha e Manuel Ribeiro assumiam de vez algo que sempre estivera presente, a tecnologia, e davam-lhe a importância de um aliado. Um quinto elemento notado desde logo no single Kit Máquina, parodiante de Michael Knight e dos diálogos com o seu parceiro Kit, sobre uma batida de disco house, recortada a partir do genérico original.
Kit Máquina ligava o Turbo Boost para Mouse Music, o álbum do verão de 1999. Se a justiça funcionasse neste país, seria um clássico instantâneo da música electrónica produzida em Portugal. Não aconteceu, mas não foi por falta de álibis. Muito antes dos Croquetes de PZ, e muito, muita antes do Inatel de David Bruno e Mike El Nite, Mamapapa foi o single viral antes de haver cultura de Internet, redes sociais e trends de Tik Tok. Canção genial dos pés à cabeça, hilariante, orelhuda, inteligente e crítica do consumismo em pleno apogeu dos Colombos e dos Vascos da Gamas, ou da chegada de cadeias como a FNAC e o Ikea a Portugal, tinha tudo para vingar. Fez-se um vídeo no supermercado (de José Pinheiro), qual Zé Povinho enlatado em conserva Warholiana. Chegou às ràdios, passou para as pessoas e alojou-se na memória colectiva mas acabou por ser como aquelas campanhas publicitárias em que o slogan fica e o produto passa.
Como seria um meme na cultura meme? Provavelmente, um advento no calendário. Mamapapa sobreviveu enquanto o nome dos Reportér Estrábico permaneceu sempre restrito a um círculo de melómanos chanfrados, teimosos e despreocupados das grandes alcateias de público. As utopias nem sempre são retribuídas mas a falta de compreensão da personagem do Repórter ou de Mouse Music enquanto coração digital com cérebro humano não o subestima. Antes pelo contrário, só sublinha o arrojo estético e a coragem de imaginar em terreno virgem em Portugal.
Os detalhes sempre foram especiais nos Reportér Estrábico. A capa de Mouse Music é uma recriação de Computer World dos Kraftwerk. E tem uma leitura extensiva se pensarmos no dilema entre a primeira vaga de êxtase tecnológico, ainda na década de 90, e o sofrimento por antecipação com o Y2k, o bug do milénio com capacidade destruir os sistemas tecnológicos no virar de calendário de 1999 para 2000. Mudar quatro números podia pôr em causa o normal funcionamento da civilização ocidental mas tal como diz a canção “nothing changes on new year’s day”.
Na segunda metade da década de 90, a música electrónica de dança repetiu a história do rock e normalizou-se enquanto manifestação de massas proveniente da contra-cultura rave. Consequência natural de vinte anos de história, desde a década de 70, de romance sólido com a cultura pop e também de um período de euforia capitalista, legitimada pela explosão da indústria tech e de uma falsa sensação de paz, como o 11 de setembro haveria de demonstrar.
O contexto podia propiciar-se. Mouse Music acontece no zénite do french touch, encabeçado pelos Daft Punk, quando Fatboy Slim, Prodigy, Chemical Brothers e Underworld são tratados como estrelas rock, e quando o house tem o disco nas mãos de Armand Van Helden ou Roger Sanchez. A investigação até parte de referências semelhantes, como o disco turistificado de Dash City (“the food so tasty/the language very typical” )ou a delirante diSKAsound, mas a toalha onde o Reportér se deita é outra. “Nous irons à la plage/s'il ny a pas de nuages/S’il fait beau/nous porterons nos maillot”, disfruta Luciano Barbosa em Nagasaki Mon Amour.
Os pormenores definem-nos. O trip-hop delicioso de Lolita é uma homenagem a Stanley Kubrick com as percussōes de Requiem pour un con de Serge Gainsbourg. Tubular uma cortesia aos Tubular Bells de Mike Oldfield. John Wayne Bobbit um mash-up das duas personagens. Um banquete de cultura pop que tem em Mnemónica a cereja, com o sample desacelerado de Recordar é Viver a abrir o festim. Não consta que tenham sido processados. É na casa de partida que mora o enunciado de Mouse Music: “First you catch the mouse/then you hold the mouse/and then you squeeze”.
Gravado em Vigo com o produtor Alex FX, autor de uma colecção de remisturas para SMLXL, em 1995, e do álbum Underdub: A Soundtrack By Alex FX, um dos mais evoluídos para a época (1997), Mouse Music tem o melhor dos mundos do Reportér Estrábico: o circo de atrocidades, a moldura pop e a ciência avançada. Morreu na praia mas não foi por falta de sol. Na luta contra a surdez colectiva, Mouse Music eram o que a banda sempre foi: cançōes de amor a alfinetar o consumismo com humor literato. Insucesso?
Mouse Music foi editado em 1999 pela NorteSul e reeditado posteriormente em CD duplo com seis cançōes adicionais: versōes de You Spin Me Round (Like A Record) dos Dead Or Alive, Pump Up The Jam dos Technotronic, recriaçōes de Eyes Are Crossed, Houdini e Mouse Music, e o inédito Pai. Não mais foram repostos e, à semelhança do restante catálogo dos Repórter Estrábico, estão bastante inflaccionados no mercado de usados. Gonçalo Vaz, ou seja Luciano Barbosa, partiu em 2019.