Rádio Macau - Rádio Macau
O fado e o cinema têm a sua Canção de Lisboa. O rock português tem o seu Bom Dia Lisboa, a alvorada de uma segunda vaga depois do boom de 1980, e o despertar de uma cidade que do início para o final da década se transformou. Um dos principais motivos para o fascínio pelos anos 80 em Portugal reside na fundação de um conjunto de manifestaçōes e fenómenos dados por adquiridos nas décadas seguintes. A música popular, enquanto montante de acto criativo, indústria mediadora, e consequência social era uma explosão à espera de acontecer. De muitos nomes que mudaram a face do país através da música, os Rádio Macau são incontornáveis.
Na idade da inocência, um grupo de amigos vivia numa moradia no Algueirão, concelho de Sintra. Os rapazes no final da adolescência. A rapariga um pouco mais nova. Todos aspiravam a ser algo, restava saber o quê. Antes dos Macaus, havia os Crânio, já com Flak e Alex Cortez. O grupo de amigos era mais extenso e incluía os futuros letristas Pedro Malaquias e Vitinha. Na madrugada dos anos 80, surgem os transitórios Local 13, renomeados Rádio Macau. Num ápice, gravam uma primeira maqueta com Olhos De Água e A Malta Está Fixe. O programa de rádio A Cor do Som leva-os ao primeiro lugar de airplay, à frente dos UHF, enquanto rodam em palcos como o da Aula Magna e em concertos nos arredores de Lisboa. Ganham confiança e avançam para a gravação de algumas das outras cançōes que vêm a compor o álbum inaugural em 1984.
O processo de assinatura de um contrato discográfico é próprio da época. Para fazer chegar a cassete às editoras, procuram as moradas na lista telefónica. Quem vem da Linha de Sintra, tem na Valentim de Carvalho (então sediada na Rua Nova do Almada) a mais próxima. E dali já não hão-de passar. A história é curiosa. “Ingenuamente, só tínhamos aquela cassete. Quando íamos a descer as escadas, alguém veio à porta e perguntou se éramos nós que tínhamos uma cassete para eles ouvirem. Pediu para subirmos. Ele ouviu a cassete. Era o Francisco Vasconcelos, na altura não sabíamos quem era. Devia ter mais três ou quatro anos do que nós, tinha cabelo comprido e estava de T-shirt. Perguntou se só tínhamos aquelas duas músicas, disse que gostou mais da primeira. Perguntou se tínhamos mais como aquela”, recordava Xana em conversa publicada na página da Fonoteca do Porto.
O responsável pelo catálogo ouve e interessa-se. Poucos meses depois, assinam pela EMI-VC. E nesta altura, a formação já inclui, além de Xana, Flak e Alex Cortez, o teclista Luís Filipe Valentim (ex-Popeline Beije) e o baterista Emanuel Ramalho (o Flash Gordon dos Corpo Diplomático, depois dos Street Kids, que há-de estar no Caminho da Felicidade dos Delfins).
É em estúdio que celebram a maioridade de Xana. “Nesse dia, havia imenso trabalho. Era o dia de meter as vozes. Não estávamos nada habituados a estúdios, claro, e estávamos muito nervosos. Estávamos com aquele peso de que eram coisas a ficar registadas para a posteridade. Foi tudo muito, muito rápido”, contava na antologia Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa do Público.
Algumas das gravaçōes iniciais, mais bizarras, acabam de fora - em 2014, foram recuperadas na colecção Space Monster, editada pelo Blitz. Para captar o suor do momento, escrevem deliberadamente para o disco de estreia. “Na altura achávamos que as últimas eram as melhores e como estávamos sempre a fazer cançōes, foram essas as últimas escolhidas”, recordava a vocalista no mesmo livro.
Provavelmente, estavam certos na escolha. Se um álbum é a fotografia do momento, Rádio Macau tem marcas deliciosas de quem se faz à estrada sem medo das curvas, mas projecta também uma banda a crescer depressa e bem, com textos inteligentes e um gosto pelo risco que há-de ser um dos andares do elevador.
O processo é curto mas tenso. Francisco Vasconcelos é o produtor e o irmão Pedro o técnico de som. “Puseram-nos algumas restrições no som. Queriam algo mais pop e nós tínhamos um lado mais sujo, underground. Não ficámos muito satisfeitos com o resultado final porque sentimos que nos limparam o som, tornaram-nos mais radio friendly (…) Era assim, na altura. Para gravarmos numa editora tão grande – e naquele estúdio – tínhamos de ceder às exigências da produção”, contava Flak na mesma conversa publicada pela Fonoteca do Porto.
Em nove cançōes de conexão imediata, conseguem ser tão directos (Um dia a mais) como Abstractos (A Noite); luminosos (Bom dia Lisboa) e sombrios (Mais uma Canção Sobre Edifícios a Arder); sarcásticos (Diabos no Paraíso) e contundentes (É Tão Fácil). E para o final guardam a soberba versão de No Comboio Descendente, de José Afonso, que o próprio recebeu com agrado.
Embora os Rádio Macau venham a ser conotados como uma banda de Lisboa, Rádio Macau é um disco de rock tipicamente suburbano - Foi um dia igual aos outros/E os dias são sempre iguais, desabafam os versos descontentes de A Noite. Já não é punk, nem é ainda tão pop como os futuros Elevador da Glória (1987) e O Rapaz do Trapézio Voador (1989). Habita numa zona cinzenta por onde andavam os primos ingleses Cure e Siouxsie & The Banshees. E tem espaço quer para o aventureirismo da etapa berlinense de David Bowie, sobretudo em algumas técnicas exploradas por Flak, quer para o entusiasmo pela cultura oriental, manifestado por exemplo em No Cenário Habitual - os Japan, de David Sylvian, eram outra referência.
As guitarras e os sintetizadores coexistem em tensão pacífica. A secção rítmica é coesa e personalizada. A palavra vive entre as pedras da calçada e a tinta dos livros. As cançōes transparecem sede e fome. Uma urgência imparável que há-de subir pelos carris de metal. E há um ícone a nascer chamado Alexandra Barbosa. Durante anos, o carisma de Xana faz dela A mulher do rock português. Em grupo, os Rádio Macau afirmam um conjunto de personalidades que, em diversas frentes, hão-de deixar marca a tinta permanente. Rádio Macau é a primeira carruagem dos mil ideais.
Rádio Macau foi editado em vinil e cassete em 1984, e reeditado em CD em 1993. Pode ser encontrado nas plataformas digitais