Nuno Canavarro - Plux Quba
Pode um objecto estranho tornar-se secretamente desejado sem grande explicação? Plux Quba - Música para 70 Serpentes desafia a lógica e apesar da invisibilidade com que viu a luz do dia pela Ama Romanta, de João Peste, em 1988, deve ser um dos discos portugueses dessa década mais referenciados internacionalmente.
Uma rápida pesquisa encontra uma entrada de Wikipedia invulgarmente completa, em inglês, a história da reedição no Bandcamp de Nuno Canavarro, a página da Flur sobre o disco, e a transcrição do texto de Fernando Magalhães, publicado no livro do Público Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa, pelo Rimas e Batidas. Para um objecto que teve uma prensagem inicial de 500 unidades e esteve indisponível durante dez anos até ser reeditado, primeiro pela Moikai em 1998, e depois pela Drag City em 2015, não pode deixar de ser visto com algum espanto.
O acaso acontece, mas como? Plux Quba surgiu logo após o regresso da Holanda onde Nuno Canavarro estudou composição no Instituto de Sonologia na Universidade de Utrecht onde “havia uma movimentação incrível em termos de concertos, exposiçōes e música electro-acústica”. Quando voltou a Portugal, “quis logo trabalhar”, recordava na obra citada. Nesse período, entre 88 e 89, chega a integrar os Delfins na fase do inaugural Libertação.
Canavarro estivera na génese dos Mler Ife Dada, com Nuno Rebelo e Pedro D’Orey, além de ter sido estudante de arquitectura no Porto e em Lisboa. De volta a Cascais, montou um pequeno estúdio caseiro com “um Ensonic Mirage, um sampler de oito bits dos primeiros que houve, e um gravador de oito pistas, um Fostex”. A precariedade foi o motor da criatividade e as limitaçōes técnicas serviram não de desculpa mas de solução.
O compositor recorreu a sons pré-gravados “embora seja difícil ouvir no disco sons reconhecidos como de um instrumento x ou y. Era tudo altamente modificado ou então gravava melódicas, sons de televisão ou fitas de música étnica”. Micro-sons indecifráveis, estranhos e belos, evocativos de uma memória distante, exercitados em trechos curtos constante de encobrimento e revelação. Um quadro sónico de desformatação, guiado pela mestria de exercícios de música expansiva de Brian Eno e Jon Hassell que parecem “convocar marcos fundamentais na música electrónica: new age, barroco, música concreta, industrial, minimal, cósmica, improvisada e sampling”, observa a Flur. “Era misterioso e enigmático”, descrevia Rafael Toral no documentário sobre a Ama Romanta.
Plux Quba é guiado pela intuição mas talvez a virtude inesperada seja o despretensiosmo da sua confecção. O feitio lúdico de uma experiência perto de iniciática. “A limitação de meios técnicos acho que funcionou a favor, porque puxou pela criatividade. Chegava a utilizar os próprios defeitos, a nível de software do sampler. Era um aparelho muito instável, havia coisas bestiais que, obrigando-o a trabalhar muito, respondia de uma maneira um bocado imprevisível. Era bestial para o género de música que queria fazer”, explicava.
Música ambiental e algo exótica, singular e difícil de compreender na efervescência de um país a sacudir os esqueletos, que tinha na Ama Romanta um dos seus agentes únicos. “Nessa altura, tinha aparecido um concurso de música ligado ao Centro Nacional de Cultura. Dei um concerto no Instituto Franco-Português, juntamente com os outros cinco projectos que tinham ido à final, e estava lá o João Peste a ver. Gostou imenso e convidou-me para pôr aquilo em disco”. Sem pós-produção, custos de produção ou contrato. Era a madrugada do faz-tu-mesmo e a burocracia que a Ama Romanta não impunha, era espaço mental para o visionarismo do capitão dos Pop Dell’Arte e respectiva companhia. “O propósito era esta música existir”, explicava o timoneiro da editora no respectivo documentário.
Plux Quba não estava sozinho no mundo mas residia numa pequena aldeia. Foi graças a um pequeno círculo de iluminados que começou a circular de mão em mão e a ganhar prestígio. "Plux Quba será o título ou a editora?”, interrogavam-se Christoph Heemann, Jim O'Rourke, Jan St. Werner, C-Schulz, Frank Dommert e George Odjik algures em 1991, em Colónia, numa sessão de escuta depois de uma viagem de 40 minutos desde Aachen, relata o texto de suporte à reedição pela Drag City. Foi o primeiro, um experimentalista alemão com longo historial desde a década de 90, a achar um disco "simples, suave, melódico e, no entanto, estranhíssimo”, descreve a editora.
Através deste círculo onde se encontrava O’Rourke, figura essencial na região do improviso, membro dos Tortoise e futuro Sonic Youth, e um Mouse on Mars (Jan St. Werner), Plux Quba foi salvo de uma morte silenciosa. O primeiro contactou Nuno Canavarro que deu o aval a uma remasterização digital de Rafael Toral para a reedição pela Moikai (de O’Rourke) com três faixas ausentes da prensagem original em 1998. “A partir daí, tornou-se uma influência para estetas do corte e costura do início dos anos 00, como Jan Jelinek e Fennesz, e transformadores atuais como Oneohtrix Point Never e Yves Tumor”, defendeu Andy Beta da Pitchfork num artigo que incluía o álbum no lugar 181 dos 200 melhores da década de 80. Visto como um precursor do IDM e da dialéctica glitch, a faixa Wask foi o barro de Nuno do álbum Vocal Studies + Uprock Narratives de Prefuse 73 em 2001.
Plux Quba tem marcas da época, só que era demasiado avançado para a compreensão da elasticidade dos seus limites. “Foi um marco no avanço da música electrónica em Portugal”, declarou Rafael Toral no documentário citado. A passagem do tempo permitiu entender o visionarismo involuntário e a improvável aclamação global num circuito restrito mas esclarecido. Em 1990, Canavarro gravou Mr Wollogalu com Carlos Maria Trindade e de então para cá trabalhou em bandas sonoras.
Nuno Canavarro recomenda uma audição com as colunas o mais afastadas entre si, em volume baixo a partir de Wask. A prensagem original de Plux Quba está avaliada em perto de 400 euros no Discogs.