Megafone - 1, 2, 3 e 4
No estrondear dos tambores do manifesto-canção Monólogo ao Pé do Ouvido/Banditismo Por uma Questão de Classe, Chico Science declarou: “Modernizar o passado/É uma evolução musical”. Estávamos em 1994 e os brasileiros estavam anos-luz à frente na identificação da memória enquanto artesanato do futuro. No Recife, o movimento mangue-beat reciclava a tradição nordestina numa fusão de rock, funk e rap com o pulsar regional do maracatu. O Maracatu Atómico, porta estandarte da Nação Zumbi de Chico Science. E produtores como Otto diluiam a cultura do nordeste em drum’n’bass no fabuloso Samba Pra Burro, de 1998.
Se a memória não atraiçoa, João Aguardela só tirou o Megafone do casulo ao segundo volume, em 1998. Isto é, só deu a cara depois de a música circular subrepticiamente em espaços radiofónicos de autor, alguma crítica e lojas especializadas como a Carbono. O Megafone era uma pequena embarcação no lago dos tubarōes, um acto solitário tão microscopicamente ambicioso como o gesto visionário, quando o país musical alinhava no deslumbramento com a balança das importaçōes.
De 1997, o Megafone 1 é uma declaração epifânica de intençōes. Música para uma nova tradição o lema. Começa com uma cantadeira, em Canto da Santa Cruz, para se seguir uma torrente de jungle, própria de quem anda fascinado com Aphex Twin ou Goldie. Nele, coexistem o sampler e a gaita de foles. Metade das recolhas são de Michel Giacometti, as restantes de José Alberto Sardinha que, sem nunca ter conhecido Aguardela, lhe deixou um elogio no Observador. “Gostei do resultado final”, reconhecia. “O João pegou em temas que mostram a realidade das várias regiões do país”, continuava. “Um dos meus objetivos não é arquivar este trabalho, é, antes, que músicos como o João os desenvolvam.”
Dito e feito. Aguardela não se limitou a reproduzir o processo de colectivos como os Transglobal Underground (Temple Head foi um molde em 1993) ou o Afro Celt Sound System - pouco tempo depois, seguido pela Sétima Legião em Sexto Sentido -, que em Inglaterra encetavam operaçōes semelhantes de etno-electrónica. Olhou de fora para dentro, cumprindo a máxima de O Meu Bairro, o fado mal-disfarçado do inesquecível álbum de estreia dos Sitiados em 1992: “O meu bairro é alegre/o meu bairro é festivo/o meu bairro é Portugal.”
Aguardela tinha descoberto as recolhas dos musicólogos. Os blues do trigo que viajavam de boca em boca através da oralidade. “Ele estava revoltado porque só naquela altura é que conheceu cantares de trabalho que tinham sido gravados dezenas de anos antes”, contava Sandra Baptista, a Sandra do acordeão e companheira até à sua partida em 2009. Com a vida de marinheiro dos Sitiados a atracar depois de dois álbuns sem o impacto dos iniciais - O Triunfo dos Electrodomésticos, de 1995, e o homónimo de 1996, recebido com pouco entusiasmo pela crítica, o Megafone surgia como laboratório pessoal. “Era uma espécie de filho mais novo que o estava a surpreender. É esse o seu trabalho mais pessoal, que junta eletrónica e música tradicional. Algo que ninguém fazia na altura”, descrevia o amigo e jornalista Ricardo Alexandre, hoje na TSF.
O primeiro episódio do Megafone ainda vem em bruto. É um exercício artesanal de corte e costura das recolhas etno-musicais e encharcamento em jorros electrónicos como o trance. Pela euforia dos ritmos, Aguardela devia sentiar-se como uma criança na loja de brinquedos mas o modo discricionário como não se infiltrou nas águas é apenas o reconhecimento do óbvio. Estava demasiado à frente do seu tempo para sequer ser entendido. E provavelmente pressentiu-o. Aguardela nunca fez segredo da cartilha: pretendia respeitar o passado para reinventar o futuro - fundi-los num só. O tempo deu-lhe toda a razão.
Hoje, aos escutarmos o trânsito entre a Beira Baixa e a Lisboa que anoitece, influenciada por Berlim, do álbum dos Bandua (ou a tapeçaria de Ana Lua Caiano) é inevitável reconhecer a presciência do Megafone e, ainda que para Edgar Valente e Bernando d'Addario tenha chegado apenas um eco, provavelmente através de entrevistas e comentários, o que há em comum é o chão, a enxada e as máquinas. Uma linha do tempo que atravessa a portugalidade através da identidade e não do chauvinismo ou do saudosismo.
Estar na vanguarda era estar numa vã guarda de incompreensão generalizada. Uma bolha de isolamento. Quando ainda não se falava na cultura de quarto, ela já era a norma de produtores de diferentes BPM. Era esse o anexo onde o barro do Megafone era moldado, apesar de o segundo volume, em 1998, trazer novidades na aproximação ao modelo convencional de canção, na recepção a convidados (familiares) e no dar a cara pela ideia.
Vamos por partes. O aperfeiçoamento da costura de Maçadela do Linho tem na participação de Sandra Baptista luzes de presença dos Sitiados. Megafone 2 é mais polido e diversificado, fruto da participação de figuras próximas como a acordeonista e a dupla Jorge Buco e Richard Pedroso no proto-fado de No Fim da Noite e da aceitação de instrumentos como a guitarra em Mineta. E o laboratório do Dr. Aguardela continua a ser bem sucedido nas experiências com o trip-hop em Às vezes lá no meu monte, o downtempo em Encomendação das almas ou a valsa em Inês. Ouvidos atentos detectaram fortes semelhanças entre a Cantiga da Segada e o início de Ava Adore dos Smashing Pumpkins, desse mesmo ano, que podia ser, sem necessidade de interrogatório, dos Nine Inch Nails. Coincidência?
“Decidi abrir a experiência”, contava Aguardela ao saudoso Miguel Gaspar em entrevista ao DN. “Grande parte do disco foi a tentar mudar de personalidade. E em dois casos, convidei músicos para comandar experiências. O que ressalta do disco é um certo lado áspero, que joga bem com a electrónica. Talvez o primeiro seja mais brutal”, explicava. Quando o jornalista referenciava o seminal My Life In The Bush of Ghosts, de Brian Eno e David Byrne, Aguardela respondia com a Banda do Casaco (com Ti Chitas). De facto, nem era preciso olhar para a nova tapeçaria portuguesa para distinguir a visão de longa distância de Aguardela. Em 1999, Moby criava em Play um mosaico simples (por vezes simplista) para as recolhas efectuadas por Alain Lomax nos arrozais do delta do Mississipi. E, de repente, Honey, Find My Baby ou Natural Blues eram êxitos planetários graças à cultura da recolha. Moby assinava mas o seu papel era apenas de cenógrafo.
“Eu, como pastor, às vezes, andava atrás das ovelhas e só com a boca, só com a boca, eu sozinho, fazia isto…” O dizer do pastor atalhou ao Megafone 3 o título de referência. Aboio, assim se chama, é o single de uma entidade que nunca quis facilitar. Uma canção deliciosa, divertida, inteligente e bem cozida com tudo para piscar olhos na multidão. Teve alguma rádio (Antena 3, Marginal) e um vídeo com antena na Sol Música, o YouTube possível da época.
Há partes que definem um todo. Aboio é, em definitivo, um desses casos de involuntária síntese de um corpo sonoro evolutivo, definido por princípios muitos claros: modernizar a tradição. Porque o passado pode ser um peso, mas pode também ser um farol. E neste caso, aportava matéria-prima riquíssima. Formalmente, o terceiro capítulo de Megafone é o mais perfeito e apurado. E se Aboio é um poço achado com água, o breakbeat de Repisa não lhe deve nada em profundidade.
Megafone 3 é o exercício de diálogo mais completo entre o tricot instrumental do produtor e as vozes. O recurso crescente a instrumentos acústicos como guitarra, baixo e bateria dilui o tradicionalismo para robustecer o tronco musical sem adulterar a identidade. Mudanças que levaram Aguardela a compará-lo aos Sitiados na defesa de uma ideia de música popular, herdada dos bailes. Por isso, não se estranha o lindíssimo violino de D. Bernardo nem a influência subliminar de alguma library music, fonte infinita de saber musical e património samplável.
“Tinha uma ideia do que era o folclore, do que era já uma tradição de música popular com a qual me identifico bastante - o Sérgio Godinho, o Fausto, o José Mário Branco - mas de repente cheguei à origem, à fonte disto tudo”, confessava em entrevista a Eurico Nobre publicada no suplemento DN+ do Diário de Notícias, em 2001. E apontava: “uma vez perdido o contacto com a tradição, já só temos uma alternativa que é pegar nesses fragmentos e reinventarmos uma nova personalidade musical portuguesa que passa por isto e por todas as experiências que possamos fazer neste campo”.
Com a tecnologia a liberalizar-se, a Internet a expandir-se através da banda larga e slogans como “vá para fora cá dentro” a servirem de bandeira turística, esta podia ser a bandeja de prata para o visionarismo de Aguardela se reflectir numa partilha colectiva mas o país pop continuava a ser complexado em relação ao exterior e com pouca auto-estima das suas raízes. Apesar de Megafone 3 ser alegre e geograficamente inclusivo, sobreviveu apenas como objecto de culto para uma minoria pouco imensa. Ou como notava Ricardo Alexandre no texto da obra Cento e Onze Discos Portugueses, a ousadia de passar o Aboio em pistas de dança foi “um delírio de poucos” e uma “estupefacção da maioria” (n.d.r. chegou a haver um concerto do Megafone no Lux). Porque apesar da pedagogia implícita, esta música era para atiçar o baile. Foi preciso esperar vinte anos para a roda abrir.
Os dois primeiros Megafones brotaram da terra ainda com os Sitiados em vida. O terceiro em vésperas da Linha da Frente. E o quarto entre as Cançōes Subterrâneas e 3 Minutos Antes de a Maré Encher, d’A Naifa. Talvez por isso, e porque Aguardela assumia o posto de baixista no grupo, as quatro cordas são quase uma omnipresença no Megafone 4, de 2005.
Sequência lógica desse trabalho solitário de pesquisa e ensaio, que nunca deixou de ser experimental, tem na massa corporal do baixo a impressão digital. Distante no tempo dos anteriores (2005), traz um Aguardela com voz de fundo de gargalo, qual Tom Waits, qual Zeca Medeiros, em Alemanha e Rouxinol. A olaria sofisticada d'A Moda da Lavoura sugere sombra e dúvida, subscritas pela enigmática Vozes. Estaria decepcionado pelo desinteresse? Ou seria apenas uma opção estética estimulada pelo negrume d’A Naifa?
O baixo é o companheiro da última viagem. Para quem acompanhou os episódios anteriores, o que se perdeu em efeito-surpresa ganhou-se em pormenor. Instrumentos e camadas de pequenos sons preenchem o Megafone 4. É um disco de fragmentos, talvez menos uno que os anteriores, mas de uma estrada só. De terra batida, à esquerda do monte rumo à lavoura. Provavelmente, o arsenal de maquinaria cresceu mas não corrompeu os ideais. E que melhor final do que uma variação para música popular sobre Seven Nation Army dos White Stripes? Música popular e música para pular como foliōes no baile da aldeia. Porque Aguardela dançava sobre girassóis enquanto olhava para as estrelas. Megafone foi um sonho para dentro que o tempo deixou para a posteridade. Está na altura de lhe devolver o crédito.
Os primeiro volume do Megafone foi uma edição de autor, e o segundo da Farol. O terceiro e quarto foram editados pela Pérola Negra, companhia que tinha em João Aguardela um dos sócios. Uma “célula artesanal”, descrevia em entrevista ao suplemento Sons do Público. Os dois primeiros estão disponíveis nas plataformas digitais. O terceiro e o quarto podem ser escutados no YouTube. O acervo de João Aguardela foi indispensável para a escrita deste artigo e pode ser consultado aqui. A retrospectiva Megafone: Música Para Uma Nova Geração reúne a integral da obra