Jáfu'mega - Jáfu'mega
No boom do rock português, os Jafumega não são banda de abertura fácil ou subida repentina quando a maré enche em 1980. É o ano de Chico Fininho de Rui Veloso e de Cavalos do Corrida dos UHF, mas os portuenses têm que aguardar mais uma volta no calendário para chegar em força às rádios com o single Ribeira, a garantia de um contrato com a multinacional Polygram.
Tudo tem uma razão: a estreia em álbum, em 1980, dá-se com Estamos Aí, já com Luís Portugal como vocalista, mas todo ele interpretado em inglês. Quando era o português a correr para o mar, os Jafumega estavam em contra-corrente idiomática, e não só. Eram uma banda atípica para a época, virtuosa, perfeccionista, com escola feita no jazz e ouvidos deitados no funk e no rock progressivo. Referências vinculadas aos anos 60 e 70 quando os requintes técnicos eram preteridos em função do faça-você-mesmo espontâneo das igrejas profanas do punk.
Para se atravessar a ponte dos Jafumega, é necessário remontar à pré-história. Os irmãos Pedro, Mário e Eugénio Barreiros vinham dos Mini-Pop, grupo formado ainda em 1969, com idades compreendidas entre os 7 e os 11 anos, que grava diversos singles, participa no histórico primeiro Vilar de Mouros, em 1971, e no Festival da Canção em 1973. O saxofonista José Nogueira era peça-chave dos combos jazzísticos de António Pinho Vargas, enquanto o baterista Álvaro Marques vinha dos Psico, banda de rock progressivo que tocava Yes, Deep Purple, Uriah Heep ou Led Zeppelin, e grava apenas um single original: Al's com Epitáfio no lado B, em 1978. Destes últimos fizeram parte António Garcez (voz, futuro Arte e Ofício, Roxigénio, Stick), Fernando Nascimento (guitarra, ex-Grupo 5 e futuro Arte e Ofício), Sérgio Castro (guitarra, futuro Arte e Ofício e Trabalhadores do Comércio) e, numa fase final, o inimitável Filipe Mendes, mais conhecido como Phil Mendrix. Não era uma apenas uma banda, era um conjunto de personalidades marcantes. Que preferia a boca de sino às calças rasgadas.
Apesar de ainda muito novos, a experiência acumulada permitiu à formação, reforçada com o falseto singular de Luís Portugal, ser maior que a idade. Ribeira, curiosamente nunca registada em longa-duração, é a passagem para a outra margem e em 1982, quando chega o disco homónimo, já os Jafumega são calejados nos caminhos de Portugal e mestres na arte do improviso.
“De repente, o país abre as portas ao mundo e o boom do rock português é uma consequência disso, com [o crescimento das] artes, do cinema, do teatro. Vivíamos uma altura privilegiada, de abertura: tudo era novo e nós também!”, recordava José Nogueira em entrevista ao Blitz aquando da reunião em 2013. “Se não havia PA, nós inventávamos um! Andávamos com ele às costas, e um dia ele queimou-se num concerto e começa a deitar fumo… Improvisa-se, arranja-se, desenrasca-se”, contava.
Jafumega é a Ponte D. Luís do grupo. O álbum-síntese de uma discografia curta mas simbólica, recheado de cançōes arrebatadoras e arranjos faustosos. Porque os Jafumega eram mestres dessa disciplina muito particular da música de músicos, mas em 1982 deu-se o feliz encontro entre zénite criativo e popularidade. A veia pop preenchia a habilidade instrumental e o fulgurante Latin’América com um dedilhado inesquecível, um refrão memorável ("Do Paraguai até às Honduras/Da Argentina ao Chile) e um solo exuberante, está aí para o confirmar. O single chegou em 1982 e fixou-se na memória colectiva.
Latin’América é o postal - fala por todo o álbum essa cançåo de abertura. Se o reggae ocidentalizado de Sei que Pareço um Ladrão já reflecte a influência crescente dos Police - até para as regiōes vocais das cordas de Luís Portugal -, a suntuosa Homem da Rádio remete para o funk (Chic? alô Nile Rodgers) de ourivesaria. Houve poucas bandas a praticar aeróbica no funk e no disco. Por aí, também se vê como eram um caso à parte, com estudos avançados em Talking Heads, Bob Marley ou Peter Tosh, nomes muito influentes mas pouco expressivos enquanto fontes musicais da época. Porque, lá está, imperavam os modelos simples e objectivos, importados do punk, com três pancadas (perdão acordes) palavras laminadas e vontade de encontrōes.
Como alunos de excepção do jazz, tudo começava no improviso. “Nós saíamos com a ideia base e depois o tema era acabado em conjunto, com contribuições: na bateria o Álvaro é que sabe, no baixo o Pedro é que sabe. Há muita discussão e muita improvisação pelo menos – 50 por cento do grupo são músicos de jazz, o que faz com que tenhamos uma música qualquer e comecemos a fazer outra coisa por cima, naturalmente. Os músicos rock não têm muito essa tradição. Nós encontrávamos sempre qualquer coisa diferente para fazer por cima das músicas, elas nunca estavam acabadas”, explicava José Nogueira na referida entrevista.
O processo é determinante em Jafumega. O álbum é um laboratório de saberes. A liberdade do jazz, a adrenalina do rock, a temperatura do funk, o suor do disco, o escaldão do reggae, sem linhas vermelhas. O falseto de Luís Portugal tanto evoca Sting nos Police como os Bee-Gees em Nó Cego. Há lugar ao sarcasmo como na Guida Peituda, nada mais, nada menos que Margaret Thatcher, a Dama de Ferro de inglesa, e grande obreira de alguma da arte mais transgressora na década de 80. “O Zé [Nogueira] era amigo do Carlos Tê”, contava Luís Portugal. E como ele escrevia sobre o Porto tanto a Ribeira como o Kasbah, do Tê, são sobre o Porto e nós gostámos. Ainda por cima eram letras bem escritas!”. Das quadras de António Aleixo veio a introspectiva Sei que Pareço um Ladrão.
Jafumega não é de todo um acto isolado. Faz parte de uma grande família portuense contribuinte para a madrugada do rock português na década de 80. Ar de Rock, de Rui Veloso, tinha chegado em 80, o homónimo dos Táxi e Tripas à Moda Do Porto dos Trabalhadores do Comércio em 81 e Independança dos GNR em 82 (sem esquecer os singles Portugal na CEE e Sê um GNR). Em A Arte Eléctrica de Ser Português, António Duarte chama-lhes mesmo “a coqueluche do Porto”.
“Nós nem conhecíamos o Rui [Veloso]. Estávamos em estúdio a gravar o disco (n.d.r. Estamos Aí), praticamente com tudo pronto, quando foi lá alguém que conhecíamos ouvir [o álbum] e nos disse: vem aí o disco de um puto giro, cantado em português. Um tipo do Porto”. Em 1982, ainda estava quase tudo por escrever mas já havia um prefácio, escrito a tinta permanente. Mudar para o português foi crucial para fazer de Jafumega um caso e as letras são além de bem escritas…musicais.
“Não havia referências [de rock cantado em Português]. Mas tivemos a sorte de encontrar gente boa a escrever. Gente musical. O Carlos Tê, ao escrever, já tinha muita musicalidade. Uma letra dele, de um certo ponto de vista, já tem música”, recapitulava o saxofonista.
“Causava estranheza a nós mesmos, no início. Pensávamos: vamos mesmo aparecer com isto assim? Se calhar não vai resultar….“, reconhecia Luís Portugal. “Eu entretanto já tinha aprendido alguma coisa [no que toca a cantar], e gosto de cantar em português, mas a nossa língua não é a mais musical. Temos muitas vogais fechadas, não é fácil. Mas, depois de lhe apanharmos o jeito, dá imenso gozo cantar na nossa língua!”, admitia o vocalista.
O verão de 82 é um fogo posto. Actuam na Festa do Avante para milhares de pessoas e no regressado Vilar de Mouros antes de uns tais de…U2. “Eles estiveram atrás de nós, a ver e a ouvir o nosso concerto», lembrava o baterista Álvaro Marques. «E foram muito simpáticos! Antes de entrarmos em palco, vieram dar-nos um abraço e dizer: que corra bem!”. No ano seguinte, o álbum Recados, onde ensaiavam uma aproximação à música popular, como em Rústica, é recebido com frieza e em 84 separam-se.
Dez anos antes de Viagens, de Pedro Abrunhosa. O que tem a ver? Tudo. Se Abrunhosa subiu a Presidente da República e teve em Maceo Parker um Primeiro Ministro, Mário Barreiros foi um super-ministro. E em Jafumega já se reconheciam alguns dos preceitos que fizeram desse o maior fenómeno pop português dos anos 90: o funk, a noite, o desejo e até umas inocente asas do desejo. Era a pronúncia do norte sem prenúncio de morte.
Jafumega foi editado originalmente em 1982 e reeditado em CD em 1990 (com a capa reproduzida em cima) com quatro cançōes adicionais resgatadas a Recados: La Dolce Vita, Uma Noite De Amor, Romaria e Rústica. A banda reuniu-se em 2013 para concertos nos Coliseus e voltou já este ano, com uma nova formação: Álvaro Marques e Pedro Barreiros saíram da banda por “razões pessoais”, enquanto Eugénio Barreiros partiu em 2020 aos 60 anos