Halloween - A Árvore Kriminal
Os preliminares de A Árvore Kriminal envolvem assaltos, tiros, vinganças e fugas. Em 2008, Sanha Allen Pires mudou-se de Odivelas para o Cais do Sodré onde se instalou com a mulher Jeremy (do grupo Djamal, o primeiro colectivo estritamente feminino de rap português a gravar um álbum - Abram Espaço de 1996) e os dois filhos. Eram ruas ainda sem pinturas rosa no solo aquelas onde montou o estúdio caseiro. Quando o álbum estava quase pronto, o proprietário do estúdio roubou-lhe o portátil onde estavam guardadas as cançōes, além de um microfone.
O assaltante não levou só os pertences. Apagou ficheiros do computador com maquetas em estado quase definitivo. Halloween combinou a vingança com um conhecido e ao bater à porta do dono do estúdio para reaver o material, o indivíduo que acompanhava o rapper baleou-o na perna. Em boa hora voltaria para Odivelas logo após a confusão já que, poucos dias depois, um grupo de homens procurou por Halloween na sua antiga casa, onde espalharam ácido e lixívia, tendo destruído a pouca mobília que restava.
Quando o álbum chegou em outubro de 2011, já vinha com cadastro. Que melhor teaser para este policial do que o sangue? A Árvore Kriminal é, como toda a obra de Halloween, uma autobiografia em carne viva da época particular do rapper português mais perigoso de todos os que têm nome na praça. Foi, aliás, o trampolim dos circuitos subterrâneos, onde era convidado para dar concertos em troco de bar aberto, para uma exposição maior em palcos e na imprensa que lhe permitiu viver da música.
Conquistar a autonomia não se deveu, porém, a qualquer tipo de cedência. Apesar da criação em regime doméstico, A Árvore Kriminal já não é tão artesanal como o inaugural Projecto Mary Witch - invisível para público transitório e mas já recebido com algum fascínio e consciência de se tratar de um objecto diferente da média do hip hop português pela comunidade mais atenta - mas garante e afirma todas as propriedades de Halloween.
É o exame de clínica geral de uma cabeça a andar à roda, como deixa claro em Convite - quando a festa se acaba fica a ressaca. “No mercy for my enemies”, proclama em Aleluia a Ressurreição do Kriminal, a confissão de uma alma amargurada entre a perseguição e o perdão. “Quantos niggas mais virão atrás da minha vida?”. É uma pergunta em forma de lamento, evocativa de um concerto na Cova da Moura, em 2006, quando o homem que o acompanhava à entrada do recinto foi baleado, levando a crer que o alvo era nada mais, nada menos que Halloween.
“Não há luz mas há um brilho no escuro/reflexo de tudo o que ficou no meu mundo”, descreve em Não Há Luz no Meu Quarto, como um diário em movimento. Halloween tinha a cultura de bairro de 2Pac, a catarse de Kurt Cobain e a ética de José Afonso. Dotes que faziam dele uma figura à parte, desconfortável e temida, mas também admirada para lá dos quadrantes do hip hop - algo de que não muitos se podem orgulhar.
Não era, nunca foi um perfeccionista. As bases eram instrumentais eram secas mas tinham a rudeza necessário para extrair o essencial: a arte de contar histórias à margem de lei com a autenticidade de quem tira tudo dos bolsos na hora da detenção. No rap português, ninguém teve até hoje a capacidade de filmar autobiografias tão vividas.
Os versos testemunhais de A Árvore Kriminal são cenas de um policial. A voz cavada de narrador do “rei do rio que não chega ao mar” não tem só o poder de nos transmitir as imagens. Faz-nos sentir na primeira pessoa do perigo, com os velhos All-Star de Drunfos, algures numa esquina escura entre o Cais do Sodré e o Adamastor a negociar do bolso para a mão.
Verdade, ficção ou intersecção? É o enigma da arte mas os episódios da saga são recheados com demasiados ingredientes da horta comunitária para este derrame ser encenado com ketchup. Querer descodificá-lo pela veracidade dos factos é infrutífero quando os relatos são tão explícitos.
O lamento ubíquo de Halloween (“coitada da minha mãe/não tem culpa do filho que tem”) é a queixa de uma alma jovem asfixiada pelo instinto de sobrevivência, e, em paralelo a busca pela redenção. Saem tiros para os inimigos, para “os rappers Floribela” e para os políticos à espera da amnistia divina no fim da viagem. Não é pólvora seca, é apenas o desejo que o julgamento chegue depressa. E veio mesmo, tal como o plano previsto.
Em 2019, Halloween anunciou a retirada, logo após a edição de Unplugeto, acústico foremente inspirado por MTV Unplugged dos Nirvana, e apesar de alguns vídeos enigmáticos no YouTube, um hipotético regresso é, até ver, uma incógnita.
A Árvore Kriminal chegou em 2011, está disponível nas plataformas digitais e pode ser adquirido aqui. Os caracteres de Mário Lopes no Público chamaram-lhe “um álbum indispensável no 2011 deste país”. A imprensa foi fundamental para conhecer e compreender Halloween mas o 7º lugar na lista de final de ano reflecte um Portugal de 2011 ainda demasiado indie para alcançar a importância de um dos cronistas essenciais do subúrbio