GNR - Psicopátria
No primeiro do boom do rock português, os líderes do pelotão eram Rui Veloso, UHF, Táxi e Heróis do Mar. Os fundistas GNR e Xutos & Pontapés corriam de trás e só num segundo período, o do Rock Rendez-Vous, se afirmaram à sua maneira como património nacional.
No caso dos Xutos, a partir de Cerco, de 1985, o culminar de um período de redefinição interna e, em paralelo, de concertos intensos como o Ao Vivo No Rock Rendez Vous, gravado um ano depois, antes da explosão de Circo de Feras. Em 1986, os GNR assinavam um manual pop da música portuguesa, decisivo para seis anos depois esgotarem Alvalade, precedido em 1990 por uma Alameda eufórica - nem só Éder foi capaz de estremecer o azulejo da estação de metro.
O êxito acidental de Dunas fora uma rampa de popularidade que as vendas ainda não traduziam. Os GNR tinham a crítica a seus pés, Rui Reininho balançava entre a pista do Frágil e os biombos de alcatrão sujo mas a volta a Portugal só chegaria com Psicopátria. E não é difícil perceber porquê: é o primeiro álbum assumida e definitivamente pop. Imparável e irresistível.
Para trás, ficava um passado de riscos e absurdinas, guiado pela guitarra angular muito Gang of Four de Alexandre Soares. O pós-punk era visita regular de médico ao consultório (Piloto Automático, Twistarte, TV Mural) mas enquanto Defeitos Especiais era boémio e sedento de excesso, Os Homens Não se Querem Bonitos é mais aventureiro e menos homogéneo - a par de Independança, são três dos melhores álbuns dos GNR. Ou dos pré-GNR como o povo os conhece, se considerarmos os pós-GNR de Vítor Rua. O cesto é o mesmo mas Psicopátria é outra fruta.
É um disco muito portuense, ilustrado pelo mergulho de cabeça de uma rapariga no Douro do desenho da capa de Fátima Rolo Duarte, a partir de uma fotografia de Beatriz Ferreira. Dunas e a lindíssima Sete Naves tinham indicado coordenadas. Escrever cançōes pop de resto zero era o futuro imediato dos GNR. E Psicopátria cumpriu o desígnio de ser pop in Rio Douro. As cordas de Alexandre Soares desceram de tom, prevaleceu a secção rítmica - o “jovem adulto” Jorge Romão surfa o baixo como provavelmente em nenhum outro álbum - e sobressai a tão marcante “pianada à GNR” que haveria de marcar o apogeu comercial do Grupo Novo Rock.
No cume deste frenesim, um Rui Reininho no pino da escrita a sacar alguns dos lombos mais saborosos da sua poesia. Pós-Modernos é um TGV neologista que ainda hoje faz parecer as promessas de um futuro brilhante com a entrada na CEE uma cena de Monty Python. Bellevue, mandatória no museu dos GNR, é digna de Miguel Torga. Nova Gente, que é tudo menos sobre agostos em Vilamoura, exerce psicologia invertida sobre as ilhas (bairros de lata) em pop tropicalista à Talking Heads. Delícias agridoces porque apesar de Reininho estar na flor da vida, já via o caixão ao fundo das escadas.
Psicopátria é luminoso nas setas, mas tem abismos na berma. E choques frontais. A deselectrificação conduziu à saída de Alexandre Soares, figura carismática e indissociável da primeira fase do grupo, em 1987. É Toli César Machado, baterista e mais tarde guitarrista, o homem do leme destas cançōes e o primeiro-ministro de uma pátria delirante mas ordeira. E é em limites pop que os GNR vingam com a conquista de um Disco de Prata, a estreia no Coliseu dos Recreios, e mais de cem concertos, com visitas a Espanha e França. Imponentes e ambíguos. Sem moralizar porque o espírito era livre e solto.
É que apesar do mergulho pop consumado em singles de primeira água como Efectivamente, os GNR não ganharam amnésia à avaria e se Ao Soldado Desconfiado é tão notável como improvável, a derradeira To Miss é uma avenida da liberdade sem semáforos.
Num período de grande caldeirada pop, com discos tão marcantes como Coisas que Fascinam dos Mler Ife Dada, Free Pop dos Pop Dell’Arte, O Elevador da Glória dos Rádio Macau e Mar d’Outubro dos Sétima Legião, Psicopátria é bússola de um norte.
Edição EMI/VC em 1986 (reed. em 2011). Em 2016, os GNR interpretaram o álbum na íntegra no Teatro Tivoli, no Porto, e no Super Bock Super Rock, em Lisboa. Psicopátria pode ser ouvido nas plataformas digitais