Gisela João - Gisela João
No princípio era o sonho da moda. E a necessidade de ajudar a família. Gisela João cresceu em Barcelos num meio humilde a cuidar dos seis irmãos mais novos ao som da máquina de costura da mãe. Por isso, quis ser designer de moda, arte que nunca chegou a estudar embora se tenha mudado para o Porto com essa finalidade (em 2021, apresentou o programa Portuguese Soul, da RTP2, dedicado às matérias-primas do calçado português). Só depois veio o fado. Na ribeira portuense onde pediu ao dono do restaurante O Fado para cantar enquanto jantava sozinha e fazia contas de cabeça para poder pagar o manjar. Saiu de lá não com a conta mas com uma folha em branco para escrever o contacto telefónico. Artur Almeida ficara tão impressionado que a contratou na hora. A voz começou a soltar-se.
Antes de ser Gisela Joåo para todos, foi vocalista dos Atlanthida para alguns. Ainda no tempo do MySpace, recebeu uma mensagem do produtor da banda (e futuro de Gisela) de fado-folclórico Frederico Pereira. As cançōes já estavam prontas. “Só gravei as vozes”, recorda em conversa com o Retropolitano. O álbum chegou mesmo a sair, para gáudio de alguma imprensa, como as cinco estrelas atribuídas por António Pires na Time Out, que realçava o brilho da vocalista.
Um dia, na feira internacional de música do mundo Womex, conheceu Hélder Moutinho, e é o empresário e fadista, o executivo dos Moutinhos (Camané e Pedro) quem a convida a gravar a solo. “Lembro-me de ter ido ao Porto acabar as mudanças da minha antiga casa. Na casa de fado (Sr. Vinho), não paravam de perguntar por mim. É aí que o Hélder diz: ‘é agora, temos que gravar um disco’. Ainda demorei algum tempo a aceitar”, confessa.
O comboio descendente da memória pára em Santa Apolónia. Um dos motivos para o espanto e aclamação generalizada terem transcendido o fado, esteve no…Lux. Na escadaria até saltar a tampa do álbum, a 14 de setembro de 2012 é convidada a dar sangue a uma versão assombrosa de Os Vampiros, de José Afonso. Destemida, avança para um concerto em nome próprio na sala de Santa Apolónia ainda no final desse ano. “Aquele mundo escuro, denso, de puntch, puntch que parecem batidas todas iguais mas não são, é o meu mundo”, reconhece “Sou de uma cidade onde havia um dos maiores clubes do país, o Vaticano. Os grandes nomes iam lá, desciam ao Porto e vinham ao Lux. Quando conheci o Manuel Reis, foi ouro sobre azul”. Foi o antigo sócio do Lux e do Frágil, morto em 2018, a incentivá-la a fazer do Lux um clube de fado, por uma noite, com bolas de espelhos e balōes cor-de-rosa. Um bar aberto.
Gravar um álbum de fado com roupa electrónica “era o que eu queria mas não me deixaram”, lembra, mas os rumores sobre o vulcão já se tinham espalhado. A erupção estava para breve. Gisela Joåo tem recordaçōes nítidas desses tempos. “Vivia na Mouraria e lembro-me de estar a passear no Castelo e ouvir fado. Aqui havia mais gente. Era tudo maior. O fado estava por todo o lado”. Por isso, concorda que “em Lisboa” a pegada dos ténis no Lux, a associação a um produtor de vanguarda como Nicolas Jaar, a imagem desassombrada e a linguagem terrena influenciaram a forma como foi percepcionada. Novos fadistas sempre houve, mas ela vinha para ser diferente.
Dez anos é uma eternidade. Gisela João, o álbum destapado 1 de julho de 2013, é fado desmaquilhado, tão classicista quanto moderno e ousado. A passagem do tempo não lhe roubou qualidades, pelo contrário só realçou a pureza e pujança. Uma estreia a transparecer anos de treino e jogo nas casas de fado, com aplausos à vista, e lágrimas de receio nos bastidores da cozinha. Noite sobre noite a beber cada silaba, sentir cada palavra e viver cada verso. Directa à selecção com lugar entre as titulares. “Queria provar que o fado vale por si, Que nem tudo tem de ter uma explicação, um motivo, uma razão”, recapitula Gisela João. “O que eu queria era cantar e transmitir as minhas emoçōes. Daí serem tão importantes os poetas. Escolher as palavras certas para transmitir o que estava a viver”. Visceral e dramática. Aos 28 anos, um tratado de maturidade de quem foi obrigada a crescer depressa para sobreviver na selva.
A força frágil de Gisela estava, e está, no poder de nos convencer que a sua vida está encapsulada naqueles poemas, alguns deles escritos antes sequer de ter nascido. Não se tratava apenas de uma interpretação, mas do verbo em carne viva. Ventos de rajada, aguaceiros e precipitação, tudo lhe passou pela voz. No álbum, enquanto síntese de uma biografia ainda breve mas rica em experiências, reluz a bravura sobre o anseio de vir para a cidade, a solidão de quem se deita só com a gata aos pés e a distância dos mais chegados. Como na emblemática Meu Amigo Está Longe, escrita por Ary dos Santos e interpretada por Amália Rodrigues em 1977. “Eu cantava essa música a pensar num amigo meu que emigrou”, conta, mas quando canta com a imensidão de uma onda gigante “Amiga, noiva, mãe, irmã, amante/Meu amigo está longe/E a saudade é tão grande” é ela que imaginamos rasa de ausência.
Gisela João pode não ter um guião fechado ou um conceito marketizado, mas é uma deambulação vertiginosa pelas emoçōes em que a narrativa se confunde com os pontos de vista. “Eu falo muito, muito, mas às vezes chego a casa e penso: näo disse nada. Queria que o fado falasse por mim, Que me mostrasse como sou. Por isso é que o álbum se chama Gisela João e o segundo Nua, para não ser Gisela 2”, explica. Esta é a história de uma mulher, ou melhor, “de muitas mulheres porque nunca sou só eu. Canto por muita gente”, corrige, para “mostrar que é possível a quem teve oportunidades, como eu tive, e a quem não as teve, vir de longe para a cidade, sem conhecer quase ninguém, e ser capaz”.
A escolha certeira do repertório é engrandecida por uma voz portentosa vinda do fundo do ser, sem artifícios. Gisela João torna memoráveis fados como Madrugada sem Sono, popularizado por Beatriz da Conceição, o notável Vieste do Fim do Mundo, escrito por João Lóio, assim como clássicos como Sei Finalmente, de Linhares Barbosa, Sou Tua, de Domingos Gonçalves da Costa, e Não Venhas Tarde, de Aníbal Nazaré. E há uma exigente Primavera Triste, escrita por Aldina Duarte, superada com distinçâo. Nem tudo é dor, ferida ou melancolia. Cançōes populares como Bailarico Saloio e (A Casa da) Mariquinhas, adaptada por Capicua - no ano passado, reescrita de forma deliciosa em O Hostel da Mariquinhas - invocam as raízes e baralham o monocromatismo.
A imagem da “fadista das sapatilhas”, captada pela fotógrafa Estelle Valente, é uma extensão da Gisela trivial e diária. “Porque é que tinha de me vestir como uma senhora de idade? Queria mostrar-me tal como me vestia no dia-a-dia. Para a minha geração, a imagem do fado era um bocado antiquada”, descreve, reconhecendo também o gosto “por provocar”. O retrato ousado foi determinante para ser vista como uma personagem de ruptura.
Gisela João foi recebido em êxtase e aclamação. Duas semanas depois de estar na rua, subiu ao primeiro lugar do top. As vendas atingiram a Platina. A crítica exultou e apontou-a como a grande herdeira de Amália Rodrigues. Uma opinião subscrita por Miguel Esteves Cardoso. “Amália Rodrigues foi a grande fadista do século XX. (...) Sei e sinto, com a mesma força, que Gisela João é a grande fadista do século XXI”, escreveu no Público. Jornal que, no final de 2013, lhe atribuiu o título de Álbum do Ano na primeira lista de sempre sem distinção entre nacional e internacional. Blitz, Expresso, Time Out e Cotonete foram da mesma opinião.
Venceu ainda o prémio José Afonso 2014, tendo o júri considerado ser"a melhor voz que já apareceu depois de Amália". Depois de concertos apoteóticos como o do CCB e o do Vodafone Mexest, chegou a vez dos coliseus em 2015. “Incredulidade e lágrimas de emoção” são as recordaçōes de um tempo tão próximo e tão distante. “Isto está mesmo a acontecer?”
Gisela João celebra os dez anos do álbum de estreia este sábado em Lisboa, no novel espaço 8, em Marvila, e no próximo sábado no Porto, no Museu do Carro Eléctrico, já com bilhetes esgotados. Será uma festa, diz, e não apenas concertos.