Fuse - Informação ao Núcleo
“No principio era o verbo, depois veio o credo”. O pregão de Hemorragia Interna é parte do fascículo infernal do franco-atirador Fuse, heterónimo possuído de Nuno Teixeira. Entrai destranca as portadas do purgatório com um bárbaro un-der-ground em Entrai. Álbum de rap para videoclubes, alas psiquiátricas e drive-ins fora do mapa, é um filme de terror “directamente do Sanatório, sala 5, 2º Piso Observatório”, cartogrado em Anikilação (Adversários). “Aquilo que eu escrevia e produzia é nada mais nada menos do que uma mescla do meu sub-consciente. Do que gostava de ouvir. Sempre fui muito fã de cinema fantástico e filmes de terror. Tudo aquilo que eu bebia tornou-se a minha escrita e forma de vocalizar”, conta.
Informação ao Núcleo fala da primeira pessoa do manicómio. Deita-se com os demónios debaixo do túnel do metro, oferece-lhes almofada e vidro em garrafas de aguardente. Vive de noite e dorme de dia. Chega-se ao precipício para sentir o prazer do abismo. Atrás dessa cortina de fumo denso, haverá uma câmara ou um par de olhos dilatados? “Fuse não é alter-ego, sou eu! No meu dia a dia, sou uma pessoa muito simples, muito normal. Tanto que há pessoas que convivem comigo no trabalho que quando descobrem, não conseguem colar a personagem”. esclarece. Fuse aceita, porém, que a escrita “é como se algo falasse por mim”. Um “canal de comunicação”, diz, enigmático, furioso e irreprimível. A criatura a soltar-se do criador.
Estávamos em 2001 e a explosão do hip-hop português aguardava nas urgências. Mind Da Gap, Sam The Kid e Chullage já davam cartas. A fila andava mas devagar. O underground era não apenas um lema mas um lugar de pertença. “Nessa altura, carregar a bandeira do underground era um motivo orgulho e uma característica de ser rapper. Tínhamos orgulho de ser underground porque era sinal de liberdade. Fazer música sem expectativas e sem estratégias”, assume.
“Aquilo que eu escrevia e produzia é nada mais nada menos do que uma mescla do meu sub-consciente. Do que gostava de ouvir. Sempre fui muito fã de cinema fantástico e filmes de terror. Tudo aquilo que eu bebia tornou-se a minha escrita e forma de vocalizar”
Os Dealema já eram uma equipa grande no fiel circuito portuense e de culto na geografia nacional do hip-hop. Aguardava-se por um primeiro álbum depois das luzes de presença na maqueta Expresso do Submundo, em 1996, e de cumplicidades como a dos Mind Da Gap no pioneiro Sem Cerimónias, do ano seguinte. Informação ao Núcleo é solto pelo inspector mórbido dois anos antes de o grupo se estrear em formato longo. “Comecei por fazer música sozinho. Descobri o rap por mim. Aí começa a pesquisa, a minha fome de música, o experimentar coisas. Depois de ter feito essas músicas, o Expeão, que já conhecia de infância, ouviu. Ele tinha uma banda de hardcore, passou-se e fizemos um grupo os dois: os Fullashit. Com o Expeão, conhecemos o resto dos membros e formámos os Dealema mas o meu processo criativo a solo nunca deixou de existir desde que descobri o rap”, recapitula.
Fuse matava o tempo a produzir. Usava o programa Fast Tracker que tinha “menos de 1MB”. Para de ter ideia, “ocupava uma disquete”. Informação ao Núcleo foi gerado no 2º Piso, o estúdio de Mundo Segundo dos Dealema, que, tal como o amigo, usava o mesmo software e também passava o tempo a caiar paredes sonoras. Foi lá que saiu “do laboratório para o papel”, comandado pelo instrumental, tal como no sucessor Inspector Mórbido (e em todo o processo Dealemático). Dos antecedentes não se recorda mas lembra-se “de estar em estúdio com o Mundo a gravar. Aparecia o Maze, aparecia o Ex-Peão. A sinergia estava muito presente. O processo foi automático”. Todos os Dealema participam, incluíndo DJ Guze no scratch, mas esta besta só tem uma cabeça.
Os blocos rítmicos são secos e minimalistas - artesanais para os padrōes de hoje - mas a poção instrumental é mais elaborada e contém interlúdios cinematográficos, excertos de música indiana, vozes escabrosas e samples. Informação ao Núcleo pode parecer rude na sua crueza, mas é um complexo exercício de sonoplastia. Desde um chop de Twin Peaks a uma fala de Welcome To Elsinore, do mestre do surrealismo Cesariny, as subtilezas enriquecem a história. “Quem diria. Que pode haver poetas. Sem poesia”. Os célebres versos de José Cid inscritos em Chamaram-Me Poeta são desenhados na tatuagem de Tudo O Que Tenho Em Mim. “Cresci a ouvir música portuguesa que o meu pai ouvia em vinil e no carro. Temos um património tão rico nos anos 70, 80 e 90. José Cid foi uma grande influência”, reconhece. “Samplei-a completamente. Se o José Cid ouviu ou não, duvido. Se fosse hoje, 2024, acredito que o processo a nível burocrático teria sido outro. Na altura, não havia limites. Era apenas fazer música pela música”. Para querer, não era preciso o jugo do poder.
Terá chegado um eco aos escritórios da Roc-a-Fella em Nova Iorque? Em 2016, Todo o Mundo e Ninguém viajava no tempo desde o álbum de estreia do Quarteto 1111, em 1970, para Mercy Me de 4:44. Em 2001, esse espólio já era gabado e reutilizado, como vénia e não como assalto. Bons Velhos Tempos é um assomo de nostalgia com uma deliciosa introdução cinemática, na paralaxe da viagem alucinante. Curiosamente, as vozes infantis do início de Tropicaliente lembram as de…Hard Knock Life de Jay-Z.
Somos recebidos a socos e pontapés. Literatos afrontamentos e poéticos insultos. Fuse é sacana, é nervoso e não conhece muitas leis a não ser as da liberdade poética. Tem tudo Informação ao Núcleo: fotografia, guião e banda-sonora. A câmara tétrica de John Carpenter, as experiências terminais de Necro e a fragmentação Pessoana. No YouTube, há quem lhe chame uma cidade em ruínas. Fuse prefere “um templo a ser desenterrado de uma cidade em ruínas”. Qualquer coisa de muito antigo no muito moderno Séc. XXI a pressentir uma queda. Seriam as Torres?
Um objecto com tudo o que um culto precisa para se abastecer: arrojo, mistério, incompreensão dos demais e adoração dos prezados (Halloween e Nerve beberam deste esgoto). A linguagem explícita vem sem advertência na capa. É muito provável que o politicamente insurrecto de então não passasse na portagem do politicamente correcto de hoje. O pretérito imperfeito a chocar de frente com o eu plural indicativo do presente. Fuse concorda. “Um disco é um documento histórico. Aquele disco retrata o ano de 2001. Era a pessoa que eu era há vinte anos. Se hoje diria o que disse naquele disco? Não sei, mas naquela altura fazia sentido”.
Factos? É beber o shot de Tropicaliente, improvável cocktail cubano, misturado quando os Orishas conquistavam a Europa (participariam em Sigue, Sigue! dos Da Weasel, desse ano), um ano antes de Quieres Dinero de Boss AC. A trilogia monogamia, nicotina e ganza é apenas um canapé do triplo X. “Sempre ouvi muita música diferente. Adorava o Compay Segundo”, identifica Fuse. Compay era um das embaixadores do magnífico Buena Vista Social Club, o clube dos amigos cubanos de Ry Cooder, que deu em filme nomeado aos Óscares na categoria de Melhor Documentário.
A temperatura de Tropicaliente era de potencial single de verão mas a malhação vernacular nunca o deixaria imiscuir-se na turma dos bem comportados do FM. Ainda assim, Fuse tenta rebobinar a cassete. “Era o tempo da Godzilla (loja) e do Repto (de José Mariño na Antena 3). Julgo que foi o DJ Kronic, ele passou-se com essa música. Estava sempre a passar. Durante uns tempos foi o single do disco. Era muito diferente do que toda a gente fazia.”
Como bom malando que foi, Informação ao Núcleo teve direito às suas rodadas. “Provavelmente através de Bob Da Rage Sense”, o álbum chega aos PALOP. Começa a circular de mão em mão nas ruas e espoleta uma vaga “de horrcore e artistas com nomes esotéricos” em Angola e Moçambique. “Foi um marco muito importante para o público angolano e moçambicano”, refere com orgulho. Em Portugal, é traficado nas margens através de cópias em CD e cassete, e, possivelmente, nos primeiros servidores de P2p, como o Soulseek, Napster, Kazaa e eMule, em que o hip-hop português começa a quebrar as barreiras impostas pela indústria.
“Nós surgimos numa altura em que não havia mais bandas. Não tínhamos estímulos exteriores além do rap americano, que qualquer adolescente consumia a vibrar e a sonhar. Grande parte da nova geração tem inspiração de artistas que vieram antes, mesmo aqueles que têm um estilo próprio como o Nerve e o Halloween. Nós tivemos a sorte de ser a nossa influência. Como uma criança que descobre o mundo. Aprendemos sozinhos a andar de bicicleta”, sintetiza Fuse sobre os dias em que a vida era um rascunho.
Estava aberta a época da caça às bruxas. No pico do verão, a chuva era ácida. “É o regresso ao passado/o presente é o futuro/máquina do tempo/o velho testamento em que não existia o veneno”, lavrava. Eram Bons Velhos Tempos de bombos que provocam coágulos no silêncio. Na delicada operação de Informação ao Núcleo “a inteligência é uma porta que se abre”. E não mais esta chama se apagou. Em 2012, o filme O Estrondo, de Alexandre Santos, revisitou o terreno dinamitado por Fuse e fez chegar as curtas de terror a um novo público de Internet. E agora trabalha numa sequela, com a pequena grande diferença de entregar a cozinha instrumental a uma nova geração de produtor, mas o coração ainda bate como da primeira vez. “É um regresso às origens. Estou a recuperar a chama de fazer música sem compromisso”.
Informação ao Núcleo foi editado originalmente em CD com o selo 2º Piso. 300 unidades depois, foi reeditado em 2002 pela Loop com duas remisturas e o inédito Canção Do Bandido. Os 50 euros no Discogs aferem da curiosidade em conhecê-lo e da dificuldade em comprá-lo em CD.