Delfins - Ser Maior - Uma História Natural
No caminho dos Delfins para a felicidade, a marcha dos desalinhados avança a céu aberto por águas nunca dantes navegadas. O ano é 1993 e o acto Ser Maior - Uma História Natural. Um álbum distanciado do seu tempo e isolado na sua obra. Conceptual, divergente e arriscado. Era a época das bandas rock de Seattle e do hedonismo das raves mas a ordem para o progresso era outra. A admiração por discos históricos como The Lamb Lies Down on Broadway, dos Genesis (concerto à qual Miguel Ângelo assistira ao vivo, com oito anos de idade, no Pavilhão do Dramático de Cascais, em 1975) e a ópera-rock Tommy dos The Who desafiavam-nos para estaçōes menos óbvias da memória. “Sabíamos que podia ser arriscado desenterrar uma abordagem mais progressiva e sinfónica. E foi por isso que o fizemos”, afirma decidido Miguel Ângelo.
Era a voz que dizia: "Andem não olhem p'ra trás!"Ao longo de quase duas horas de epopeia, conta-se a história de uma metamorfose. Um golfinho que se transforma em homem, desilude-se com o egoísmo materialista dos humanos e ascende. “Deixou/A casa dele/E partiu/Atrás do sol/Levou/Tudo com ele/E subiu sem hesitar“, declara a lindíssima canção titular. “Não é uma história fechada”, alerta o vocalista. “Alguns desses discos também não a tinham. O The Lamb Lies Down on Broadway, por exemplo, tem uma história estranhíssima que ainda hoje gera discussão”. Aliás, Miguel Ângelo lembra-se de só escrever depois de boa parte das maquetas estar pronta. “A história foi aparecendo. Não foi demasiado planeada”. As viagens do Delfim publicadas na revista Fórum Ambiente, depois transferidas para as páginas da Fórum Estudante, também serviram de moldura poética para a história naturalista de Ser Maior.
Os Delfins estavam, entretanto, em pousio para reflexão. Em 1991, Miguel Ângelo e Fernando Cunha entregavam-se à Resistência. O colectivo nascia por casualidade a convite do Partido Socialista para actuar no encerramento de uma campanha eleitoral no Rossio. À falta de orçamento, os dois Delfins, Pedro Ayres Magalhães e Tim apresentam-se a quatro na torre do PA para trinta mil pessoas. É tiro e queda. Tozé Brito assina o grupo para a BMG mas como parte do repertório estava nas mãos da EMI-Valentim de Carvalho, David Ferreira entra em cena e sela um acordo de cavalheiros. Ainda nesse ano, gravam Palavras ao Vento e, no ano seguinte, dão 30 concertos só no verão. Os números atingem a dupla platina, por vendas superiores a 80 mil unidades. São os anos dourados da indústria suportados pela afirmação da música portuguesa como grande fenómeno popular.
Em 1990, Mingos e os Samurais, de Rui Veloso, sela um máximo de álbum mais vendido com sete platinas. Seguem-se os Resistência e a difusão de um cancioneiro pop/rock recente que revela cançōes como A Noite, dos Sitiados, e dilata a popularidade de Amanhã é Sempre Longe Demais, dos Rádio Macau, ou Não Sou o Único, dos Xutos & Pontapés. Os Delfins são talvez os principais beneficiários desta frente popular. Já conhecidas da rádio e dos álbuns Libertação, U Outro Lado Existe e Desalinhados, 1 Lugar ao Sol, Nasce Selvagem e a Marcha dos Desalinhados são expostas a plateias ainda mais numerosas. E quando o sucesso chega em 1995 na antologia O Caminho da Felicidade, está lá também o furor da Resistência.
A música portuguesa também esgota estádios. O Portugal ao Vivo enche Alvalade para ver Sitiados, Sétima Legião, Delfins, Madredeus, Resistência e Xutos & Pontapés; os GNR fazem Alvalade e as Antas, e o espectáculo Os Filhos da Madrugada de homenagem a José Afonso, também leva um mar de gente ao antigo estádio do Sporting em 1994. Os Madredeus, com O Espírito da Paz e a banda sonora de Lisbon Story, também se encontram no seu apogeu.
O vocalista não vê nos Resistência o prólogo de Ser Maior a não ser “na vontade de fazer um disco eléctrico depois de termos estado mais dedicados ao acústico” mas há um pivot neste guião: Pedro Ayres Magalhães. É ele quem assegura o baixo, posto que ocupara no Heróis do Mar, quando Rui Fadigas se afasta durante cerca de um ano. E quando o baixista regressa, mantém-se nas cordas mas da guitarra clássica, às quais se tinha dedicado a estudar, tal como nos Resistência e nos Madredeus. Mais: é dele a autoria de Ser Maior, cheia de tricotados e sons aquáticos, o fado parente dos Heróis do Mar Estrela da Vida, a quimérica Novos Rumos (“procura a força do teu salvador”), a sofrida Manhã Perdida, a instrumental Chrysalis e a ríspida Casa em Sintra, assinada com Fernando Cunha (que lhe dá voz) e Paulo Pedro Gonçalves, com uma massa eléctrica de som à The Cult. “Algumas canções ainda faziam parte do baú do Pedro Ayres Magalhães pré-Heróis do Mar”, confirma.
Vestidos com “uns fatos de monge que o Pedro Ayres Magalhães tinha guardados”, inspirados na equipa técnica da digressão de Rust Never Sleeps de Neil Young, os Delfins apresentam-se ao vivo ainda em 1992 já com uma ideia conceptual em mente. Um disco triplo em vinil, só possível devido à construção ao longe desse ano, do 1 Só Céu, onde antes havia três garagens abandonadas, em Cascais. O estúdio haverá de ser a casa dos Delfins ao longo dos anos seguintes e local de gravação para as bandas das redondezas. “Para se ter uma ideia, cada hora nos estúdios da Valentim de Carvalho, em Paço de Arcos, custava 110 euros (na moeda actual). Era muito caro gravar na altura”, recapitula Miguel Ângelo. “Íamos para estúdio e passávamos lá o dia. Se nos apetecesse, mudávamos tudo o que tínhamos feito”. E o sonho desceu à Terra.
Pedro Ayres Magalhães chegou a ser proposto como produtor mas seria “uma presença demasiado forte”. Porque “quando ele pega numa obra, toma conta daquilo”. A produção acabou por ficar nas mãos do guitarrista e compositor Fernando Cunha, que tem em Ser Maior o seu exercício pessoal para seis cordas mais conseguido, e a co-produção entregue a Jonathan Miller. É com o inglês que Miguel Ângelo se lembra de estar a viajar para Londres a 1 de janeiro de 1993 para recolher material encomendado em lojas a preços mais baixos para o 1 Só Céu. “O equipamento era muito caro. Só a mesa custou 11 mil contos”, recorda.
O universo epopeico de proeza e transcendência é reconhecível nas linhas de Ser Maior - Uma História Natural mas as intençōes são desmistificadas. “É uma fábula. O imaginário do Pedro é mais cinematográfico do que algumas pessoas pensam”. E, por isso, herdeiro das obras que o inspiram. Ainda assim, há uma linha a unir a lenda dos Heróis do Mar às aventuras terrestres e aquáticas dos Delfins. “Vou de Norte a Sul/sempre junto ao mar/sempre a respirar o sal/vejo sempre tudo azul“, é a rota existencialista de Sal, uma das mais eléctricas do álbum, sobre a vida de estrada (vídeo), enquanto a icónica Ao Passar um Navio - talvez a mais caseira a seguir à Baía de Cascais - mergulha nas águas pop límpidas e transparentes que fizeram dos Delfins um caso pop de sucesso. O vídeo de José Pinheiro foi filmado na Praia da Ursa, perto do Cabo da Roca, em Sintra, com imagens subaquáticas. O álbum move-se entre a corrente marítima de Cascais e o misticismo serrano de Sintra.
Apesar do clamor de hinos como Ao Passar Um Navio, A Queda de Um Anjo e Ser Maior, o disco reivindica um lugar para si na viagem dos Delfins. Ao sol ou à sombra? “É uma obra de culto. Há pessoas que só gostam deste disco”, reconhece Miguel Ângelo, sem pejo em tratá-lo por “maldito” pela singularidade. “Quando o disco foi reeditado, reouvi-o. Já não o ouvia há muito tempo e fiquei surpreendido com a quantidade de camadas (sonoras)”, realça.
Editado em triplo vinil e duplo CD, gera números animadores. Ser Maior - Uma História Natural é Disco de Prata com cerca de 17 mil unidades vendidas logo à partida. Já com as cabeças de golfinho assinadas por uma jovem desconhecida Joana Vasconcelos, prima de Ricardo Vasconcelos com quem a banda trabalhava a imagem, apresentam-se no Portugal ao Vivo para 40 mil pessoas. A teatralidade do espectáculo de Ser Maior traz o convite do encenador Carlos Avillez para criar a música do Breve Sumário da História de Deus de Gil Vicente, no teatro com o mesmo nome em Cascais.
Ser Maior é um anti-inflamatório extremamente eficaz para as últimas dores de preconceito com os Delfins, aplicável na zona lombar das cançōes. Numa região nem sempre pop, neste caso.
Ser Maior - Uma História Natural foi editado em 1993 em triplo vinil e duplo CD. Em 2015, foi reeditado em CD duplo com um DVD com do espectáculo no Portugal ao Vivo de 26 de Junho de 1993 no antigo Estádio José Alvalade.