Dead Combo - Quando a Alma Não É Pequena
A obra dos Dead Combo não se define por um álbum. Vale como um todo, em que parte responde por um período específico do grupo, quer enquanto desafio interno, quer na relação com o redor. Por exemplo, Lusitânia Playboys (2008) expandia o som do combo, absorvendo marcas da estrada e não só, enquanto Lisboa Mulata (2011) bebia das mornas da Bica - a “afro-Lisboa” adquiriu diferentes significados e representaçōes, de acordo com os seus actores.
Qualquer um destes teria cartel para defender uma das mais importantes bandas portuguesas deste século, como A Bunch of Meninos (2014) ou o último aceno de Odeon Hotel (2018), mas foi Quando a Alma Não É Pequena (2006) a afirmar uma personalidade única e a fazer dos Dead Combo não apenas um acontecimento passageiro de impulsão da crítica, mas um caso definitivo e de importância capital. Em paralelo com os Buraka Som Sistema e Sam The Kid (2006 é também o ano do EP From Buraka To The World e de Pratica(mente)), uma nova cidade franca e aberta assomava no horizonte, e tinha na música uma das primeiras sirenes. Lisboa estava a mudar e, no entanto, as ruelas de má fama, as facas, os alguidares, a corda da roupa, os amoladores, os traficantes e os nómadas não-digitais sempre lá tinham estado. Dois homens na cidade efabularam a história para homenagear estas personagens.
Quando a Alma Não É Pequena nem sequer é o pecado original dos Dead Combo. A estreia acontecera em 2004 com Vol. 1, embora as gravaçōes inicias, ainda apenas de Tó Trips remontem a 2002, documentadas no menos conhecido Guitars From Nothing, editado em 2007. O guitarrista tinha passado recente nos Lulu Blind que após uma década de 90 a expressar-se em inglês, se reinventaram em português no vigoroso Foge de Ti (2001), muito inspirado pelos Queens of the Stone Age. Músico de treino jazzístico, com escola no Hot Clube, Pedro Gonçalves chegou a tocar nos últimos dias dos Despe & Siga e a ser um dos Assessores de Sérgio Godinho, além de trabalhar em estúdio.
A história é conhecida. Os dois conheciam-se de vista do Liceu D. Pedro V. No final de um concerto de Howe Gelb no Santiago Alquimista, Tó Trips pediu boleia a Pedro Gonçalves mas na falta de um carro, caminharam até ao Bairro Alto. Durante a conversa, chegaram a conclusōes semelhantes. Tó Trips estava farto da dinâmica das bandas e Pedro Gonçalves saturado dos circuitos fechados do jazz. "Disse-me que era uma coisa inspirada no Carlos Paredes. Fez-me um bocado de confusão porque não percebia muito bem como é que o Tó Trips, dos Lulu Blind, casava com esse imaginário, mas mal o comecei a ouvir tocar fiquei logo convencido", recordava Pedro Gonçalves ao DN em 2018.
De um acaso nasceu um movimento perpétuo. Movidos pelo dedilhar do mestre, crentes na transmissão de emoçōes das cordas da guitarra e do contrabaixo, imaginaram um futuro tão improvável na época como consequente no devir. Sem voz, mandamento ao qual cederam apenas em casos pontuais e justificados como na leitura de Inquietação e na metafórica Ouvi o Texto Muito ao Longe, ambas com Camané - só alguém desta grandeza teria a capacidade de compreender o lugar desta fala tão específica e a importância de cada palavra num espaço tão único.
Em Quando a Alma Não É Pequena, as afluências do cangalheiro e do gangster ficam claras para o resto dos dias combo - talvez com excepção de África. O jazz desfocado de After Peace, Swim Twice. Os blues desajeitados à Tom Waits da canção-titular e de Mr. Eastwood. O western spaggheti de Assobio (Canção do Avô). A rumba de A Menina Dança. O fado de Ai Que Vida e Esperanza (Bounty). E o Tejo a uni-las. Grande, grande é a viagem de ida e volta ao Cais.
Irónico como Quando a Alma Não É Pequena é presciente de uma cidade a irromper e o derradeiro Odeon Hotel é sintomático de uma mesma cidade a implodir. Na doce melancolia, na tristeza sem lamento ou na rodada por conta de casa, os Dead Combo sempre foram cultura popular. Vol. 1 deixou a pré-história escrita mas a história conhecida do imaginário colectivo começa a amarar em Quando a Alma Não É Pequena. Não nasceu num dia mas conquistou o direito a ser numa cidade do mundo sem complexos de inferioridade. E hoje, ao escutarmos colectivos como o Expresso Transatlântico é impossível não reconhecer nos Dead Combo um manual de navegação.
Quando a Alma Não É Pequena foi gravado na ZDB e tem como convidados The Legendary Tigerman, Sérgio Nascimento, Nuno Rafael e Peixe. A edição foi Universal em 2006 e está disponível, quer nas plataformas digitais, incluindo o Bandcamp, quer em vinil através da Rastilho.