Croix Sainte - The Life of He
É uma constante. Quando se pensa nos maiores tesouros dos anos 80 portugueses, The Life of He é imprescindível pela sua beleza, exclusividade e sugestão. 18 intrigantes minutos de uma liberdade estética encharcada por outros prazeres e desejos simbólicos de uma utopia. Filosofia, política e espiritualidade os eixos de uma vontade de participar numa matemática de múltiplas incógnitas, sem necessariamente resolvê-las, apenas pelo prazer de testar limites e desbloquear caminhos. Os Croix Sainte tinham referências exteriores mas eram diferentes de tudo o que se fazia cá. E o único máxi gravado em 1985, peça de colecção nunca reeditada, não deixou que partissem apesar da ausência física.
André Louro de Almeida (voz), Paulo Monteiro (guitarra) e Luís San-Payo (bateria) eram alunos de Artes da Escola António Arroio. João Robert (baixo) vinha de Ciências. “Eles queriam fazer uma banda. Tinham convidado um vocalista que por algum motivo não pôde ficar. Estavam habituados a ver-me falar e, já não sei precisar porquê, convidaram-me para fazer uns ensaios e cantar”, conta André. “A partir daí, as coisas foram-se consolidando. Os primeiros ensaios foram numa garagem nos Olivais, se não estou em erro em 1981 (de acordo com o artigo do Público de 2021, o espaço era partilhado com os URB, dos irmãos Zezé e Nini Garcia, que haveriam de fazer parte dos Mler Ife Dada. O primeiro seria o guitarrista dos GNR no ciclo de Rock In Rio Douro). Depois, passámos para a garagem da casa onde eu vivia em Loures. Era bastante maior. E depois fomos para Benfica para uma cave com bastante luz e um terraço aberto, que pertencia ao pai do Luís”. E assim começava a curta história do movimento físico dos Croix Sante.
A banda formou-se em 1981. “Talvez um ano ou dois depois, de repente sentimos que tínhamos encontrado uma identidade, ou pelo menos a génese. O Paulinho aparecia com uma guitarra diferente, os instrumentos melhoraram, as coisas foram ficando mais definidas”. Começam a circular por diferentes palcos, alguns deles improvisados. André recorda concertos “na Escola António Arroio, no Rock Rendez-Vous, alguns no Porto e em acontecimentos nocturnos. “Éramos principalmente uma banda ao vivo”, reconhece sobre um período de agitação cultural que, dez anos depois do 25 de abril, começa a reduzir distâncias para o exterior.
O fervor da António Arroio foi decisivo para se formarem superiormente na cátedra de bandas arty. “Se os Croix Sainte era um micro-laboratório de ideias, a António Arroio era um macro”, concorda André. “Houve uma série de pessoas que se foram tornando importantes na vida portuguesa”, refere citando os nomes de Fernanda Fragateiro, António Rosado e Pedro Vasconcelos. “A António Arroio era um sítio de experiências. Havia grandes salas de barro, havia salas de pintura e escultura. Os corredores eram sítios onde havia diariamente micro-performances”.
Em palco, já se destacavam sobretudo pelo carisma de André Louro de Almeida, evidenciado por uma atitude de demanda interior, fisicamente próxima e espiritualmente infinita. “Por vezes, André parecia cantar para si próprio, fazendo-o para nós. O seu corpo, e as palavras, pareciam encarnar, a um só tempo, a desordem interior e social da época“, descrevia Vítor Belanciano no artigo publicado pelo Público. Quarenta anos depois, André reconhece que “os primeiros concertos eram estranhos, as pessoas ficavam paralisadas e surpreendidas, mas quando vinham a um segundo concerto, e nós também nos disciplinámos, as pessoas também se disciplinavam a ouvir-nos. A recepção foi sendo progressivamente melhor”.
Os Croix-Sante nas Belas Artes em 1982
Ao Público, Luís San-Payo recordava o primeiro concerto no final de 1982, nas Belas Artes, na companhia dos Sétima Legião. “Isso foi organizado por mim”, recorda Luís. “Convidei os Sétima [Legião] e depois eles retribuíram com um concerto no liceu D. Leonor em que nos convidaram. Era amigo do [fotógrafo e artista] Álvaro Rosendo e um dia fui à associação de estudantes propor-lhes o concerto. Fiz o cartaz, bilhetes, fui à procura de um PA. Uma aventura. Mas aquilo encheu, gente à porta, foi bestial, apesar do amadorismo”. A falta de recursos não era uma limitação, antes pelo contrário. Forçava a acção como o máxi haveria de demonstrar.
Antes de se anunciarem como banda, eram “um laboratório de ideias”, confirma André a partir da ideia fixada no livro Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa do Público, em que descrevia os Croix Sainte como “quatro pessoas que conversavam até às seis da manhã”. “Eu estava muito interessado em epistemologia. Em crítica de conhecimento. Para mim, era insuficiente a aproximação à realidade através da ciência. Precisava de outras fontes. Era muito estimulante. Eu lidava com conceitos da filosofia do esoterismo. O João Robert trazia um pensamento complementar com os últimos avanços da Física. O Luís San-Payo era uma pessoa muito interessada em justiça social. O Paulo era um esteta mas abrangia todas estas coisas. Tinha o coração em algum misticismo e uma visão espiritual da realidade. Por outro lado, era pragmático e consciente da cidade. A forma como ela afectava a psique e o desenvolvimento psico-afectivo das pessoas. E a forma como as economias limitavam as pessoas”, retrata.
Acarinhados por uma comunidade artística a florescer e reformular a cidade de Lisboa, concorrem ao 1º Concurso do Rock Rendez-Vous e acabam em 3º lugar, atrás dos vencedores Mler Ife Dada e dos portuenses Culto da Ira. The Life of He, “uma das primeiras cançōes a ganhar princípio, meio e fim” acaba incluída na colectânea do festival. É uma canção fabulosa, longa, taciturna e expressiva, com diferentes secçōes, simultaneamente contida e explosiva no refrão. Reverbera a Inglaterra urbano-depressiva da época (Joy Division, Cure, Echo & The Bunnymen) mas é dotada de uma pulsão singular que a poderia ter projectado como um clássico se a sua proveniência fosse Londres, Manchester ou Liverpool.
“O corpo tangível eram estas influências todas, de Manchester, Liverpool, Londres, Simple Minds, Joy Division e The Cure. Eu tinha muita ligação a coisas alemãs como Can, Amon Düül, Cluster e Kraftwerk, mas o Luís e o Paulo estavam muito conscientes do que se fazia em Inglaterra”, recorda André. “Para nós, era sobretudo uma questão de forma porque os conteúdos surgiam de observação. Era eu que escrevia as letras, as perplexidades e estados psicológicos do resto da banda. Era muito mais do que um exercício estético ou do que uma tentativa de entrar num caudal de música inglesa. Estávamos seriamente interessados em duas coisas: conhecimento e mistério. Afinal, são complementares. Isso para nós era fundamental”.
Pelo canal auditivo chegavam outras fontes exteriores aos eixo pós-punk urbano-depressivo como “Golden Palominos, Brian Eno com David Byrne no My Life In The Bush of Ghosts e Laurie Anderson”, nomeia. “Principalmente comigo. Foi a minha professora de Filosofia quem me iniciou a Laurie Anderson. Penso que foi um dos discos que mudou a minha vida. A possibilidade de depositar palavras com a gramagem certa, sentido rítmico, a cadência certa interessou-me e ainda me interessa”, defende. “A Laurie Anderson foi uma ruptura. Os Pere Ubu enquanto completa experiência de liberdade, cor e expressionismo. E o que se estava a passar com David Byrne e Brian Eno interessava-nos imenso. Assim como o Jon Hassel. Tudo o que andava à volta da Opal, a editora do Brian Eno. É curioso porque no mesmo dia podíamos ouvir coisas bastante intensas como Birthday Party até ouvir os Material”, revive, sem deixar de reconhecer que nesse carrossel havia “abertura para coisas que se tornaram mainstream como Simple Minds e U2 do álbum October.” Não só a bolsa de referências era bastante acima da média alternativa como denunciava uma escola de pensamento intercedida pela música.
Conseguiram juntar algum dinheiro e investiram “no máxi de forma independente”, continua André Louro de Almeida. “Gravámos na Valentim de Carvalho. Não sei se conseguimos horas com desconto mas parecia ser o passo óbvio. Pegar nesta música e ir para estúdio (…) Quando entrámos em estúdio na VC, foi uma sensação incrível de expansão. Tudo era novo e perfeito. Acabámos por convidar a minha irmã [Alexandra Louro de Almeida], para tocar piano e um amigo dela, o Daniel, para tocar violino”.
“O The Life of He foi a nossa segunda experiência de estúdio. Foi interessante ver a mudança. Música que era expansiva e extrovertida, em que toda a gente tirava o máximo do seu próprio instrumento, com n pedais de distorção, para uma coisa muito mais penteada, imobilizada e penteada pelo Amândio Bastos (técnico de som dos estúdios da VC que “melhorava” o som dos concertos dos Croix Sainte)”, conta.
The Life of He, a canção-bandeira dos Croix Sainte, tinha a potência de um clássico, mas o restante EP desmontava o eixo pós-punk e divagava por outras esquinas. Everspring é um breve exercício de estilo instrumental enquanto Enabell é um longo poema complementar ao tema-título. A minimalista The Birthday, apenas para voz e piano, tem o primor de deixar tudo em aberto. Os Croix Sainte eram um corpo livre em campo aberto e o que tinham de mais fascinante era o inexplicável. A zona cinzenta entre rigor, liberdade, filosofia, poesia e espiritualidade. Arte e ciência, talvez. O tal espírito invisível invocado no segundo álbum dos Mler Ife Dada já no ocaso da década de 80 quando algumas destas pontas se tinham organizado ou soltado de vez.
“Não é um microscópio mas é música. E a sensação de a usarmos para entrar em território desconhecido, já a tínhamos. Mesmo em 81, 82, 83, quando grande parte das reuniōes entre as pessoas naquele contexto urbano aconteciam à noite, era um universo de gozo, prazer, lúdico, protesto e às vezes decadência. Tínhamos a preocupação (de questionar): “isto leva-nos onde? qual é a ciência? Queríamos chegar a algum lado, embora não soubessemos onde”. Há quem defenda que The Life of He não é plenamente justo para com o potencial da banda e atribua a essa conclusão a inexperiência de estúdio. O máxi já era a segunda e não a primeira gravação. De trás vinha “uma maqueta com sete ou oito cançōes ou talvez mais”, na posse de Paulo Monteiro. “Nessas gravaçōes, tivemos o Ricardo Camacho dos Sétima Legião. Ele fez uma série de experiências com teclas e sintetizadores. Correu bastante bem”, confessa.
Tudo era pensado, como a iconográfica capa do máxi, assinada colectivamente. Uma saída de emergência alegórica de uma necessidade de se libertarem de espartilhos. “Foi considerada uma das melhores capas dessa época. É um sinal que toda a gente vê nos centros comerciais e a nossa versão era: ‘atenção que existem caixas. Essas caixas são invisíveis. São de todos os tipos mas há um mundo de liberdade lá fora e é importante corrermos para ele’. Era uma intuição de que a pressão das grandes potências, da indústria, da tecnologia e uma grande indiferença entre as pessoas”, descreve.
Graficamente, o verde contrastava com os tons sombrios padronizados pela vanguarda da época. A opção não era inocente. “ Decidimos manter o verde porque era um símbolo de esperança”, assume. “Já estávamos a abrir para outros valores que não eram tão cinzentos, deprimentes, ou urbanos: atlas, geografia, massas tectónicas, massas aquáticas, oceano, aves…em 1982, era novo. Estávamos a abrir para a percepção da Terra como superorganismo e para o ser humano como parte. O verde é o original de uma saída de emergência mas podia ter sido impresso a preto, vermelho ou azul”.
A postura ética e de ponderação sincronizada com espontaneidade era extensível à atitude auto-determinada de editar por mão própria The Life of He. “Havia uma resistência mas não era uma antipatia. Nem era cínica. Era mais: “ok, as fórmulas acontecem, o dinheiro acontece, a notoriedade acontece mas não queremos perder o sentido de laboratório de exploração”, justifica. O embrião do faz-tu-mesmo fazia sentido porque “era muito simples polir as coisas para agradar a hábitos culturais pré-estabelecidos na cabeça das pessoas” e, em paralelo com a Fundação Atlântica, criou um precedente. “Lisboa dava-nos uma sensação de asfixia e claustrofobia. E também havia uma crítica vaga em relação e generalizada embora não trabalhada à ideia de hiper-adaptação, que é importante porque vivemos em sociedade, mas nós achávamos que as pessoas baixavam os braços muito rapidamente e resignavam-se”.
Os Croix Sainte combatiam a inércia como um fluxo entre a reflexão e a acção. O exemplo ficou. “Uma parte do espírito libertário radical do João Peste e dos Pop Dell’Arte podia ter sido cultivado e estimulado pelos nossos concertos. Eles eram um pouco mais novos que nós”, ensaia como hipótese. João Peste reconhecia o facto em entrevista televisiva reproduzida no documentário Ama Romanta – Uma Utopia que Fazia Discos. “Na altura, fui um pouco estimulado pelo facto de os Croix Sante, que eram uma das mais bandas mais importantes da cena musical portuguesa da altura, terem tido a coragem de fazer um máxi de auto-edição. Era uma atitude nova num panorama em que as pessoas se queixavam muito de não ter discos editados mas também não faziam nada nesse sentido”, reparava o mentor da Ama Romanta e vocalista dos Pop Dell’Arte. “Não fomos os primeiros mas aquilo teve impacto para aquela geração”, concorda Luís San-Payo na mesma sequência. .
“Éramos muito compreendidos por pessoas ligadas à arte. Toda a fauna da zona de Campo de Ourique, onde cresceram os Pop Dell’Arte e outros músicos, compreenderam-nos instaneamente. Havia um grupo razoável de pessoas em Lisboa que ouvia punk, pós-punk, gótico e música experimental, que depois vieram a incluir o Sei Miguel e o Nuno Canavarro. Essas pessoas também nos compreendiam. E era uma atracção mútua”, devolve André. “Era um conjunto de pessoas que não se conheciam entre si mas na mesma geografia e na mesma época, fazem acontecer qualquer coisa. As músicas de umas e outras bandas perduravam no nosso imaginário. E também no nosso conjunto de intençōes. Bastante. Os portugueses estavam a tomar consciência de que se houvesse dedicação, tempo, algum dinheiro e boa vontade, podiam surgir coisas fantásticas. Tínhamos essa noção de estarmos na génese de uma porta a abrir-se. Não nos sentíamos isolados nem orgulhosamente sós. Às vezes, havia um psicadelismo que não sabíamos de onde vinha”, identifica.
Em 1986, We Built Cities, com a sua secção rítmica repetitiva, a austeridade vocal de André Louro de Almeida a lembrar Bruce Gilbert dos Wire, e as gotas da guitarra de Paulo Monteiro a remeter para os Chameleons, seria o último suspiro da curta existência dos Croix-Sante.
Concerto no Pavilhão d’Os Belenenses
“Sou em parte responsável porque a determinada altura o chamar da natureza espiritual torna-se mais forte do que tudo o que fazia. A atmosfera de Lisboa, dos concertos, tornou-se asfixiante para mim. Tive de me ir embora. Eles também já tinham outros projectos. Posso ter sido brusco ou injusto mas nåo foi uma zanga. Precisava de seguir noutras direcçōes. Estava a aborver demasiado o rock e a loucura da noite lisboeta. Fiz uma pausa e descobri outras coisas. Foi difícil voltar”, reconhece André, asseverando que “a relação de uns com os outros permanece intocável”. Ainda chegaram a dar alguns concertos com o saxofonista Rodrigo Amado e o violinista Mário Resende (Duplex Longa) mas um prometido álbum de título Earth Time nunca chegou. E o fim chegou com naturalidade
Como sucede invarialmente nas bandas germinadas na idade dos porquês, prevalecia a “música e camaradagem entre nós”. Luís San-Payo seguiu para os Pop Dell’Arte onde se manteve como baterista e compositor fulcral até ao início deste século. Paulo Monteiro juntou-se no início da década de 90, após de uma primeira reformulação depois de João Peste ter regressado de Inglaterra onde passou uma temporada, além de se dedicar à publicidade. San-Payo também é baterista residente da banda de Rodrigo Leão, chegou a fazer parte dos Rádio Macau e tocou regularmente com os Irmãos Catita. João Robert dedicou-se à física. André produziu o álbum M de Anamar e continua a trabalhar num projecto de spoken word.
Em estudo, está a edição de “uma possível retrospectiva” com as cançōes da primeira maqueta. Luís San-Payo tem o master e Paulo Monteiro a cópia. Segundo uma notícia do Blitz, de 1996, a cassete gravada em Maio e Setembro de 1984 inclui duas versōes de Kahahari e Conviction, uma versão de um original dos Bauhaus, o instrumental The Orchid e seis inéditos.