Foto de Jorge Buco
“Como é que vivem? Mal!” Em resposta ao Sete, os Censurados justificavam a raiva canina que os inconformava. Os primeiros versos da estreia homónima escreviam a razão de ser de tanta sanha. “Viver acorrentado/Viver sem saber para quê/Correr sempre em frente/Correr para um sítio diferente”. Um refrão, tudo dito: “Para onde vou/Não sei nem me interessa/Quero partir/não quero viver a pressa/Esta é a minha angústia/que eu tenho de viver aqui”.
A fúria de Angústia era a velocidade de cruzeiro de Censurados, marco histórico do punk inserido num período vivo em choques eléctricos e transmissōes de corrente. Álbuns como Veneno e Portem-se Bem dos Peste & Sida, e Rock Radioactivo, dos Mata-Ratos escreveram parágrafos essenciais e esticarem o braço do punk para além da glorificação dos Xutos enquanto instituição rock. O primeiro álbum do grupo é o mais cru e intenso dos três. É ingénuo como uma criança a correr atrás da bola no recreio, embora preocupado como um adolescente sem esperança no futuro.
O paradoxo entre alegria de viver e insustentável leveza de ser nutria uma banda com canais auditivos formados nos grandes clássicos do punk desde os finais de 70 mas tudo o que saía do quarto de João Ribas, em Alvalade, era vivido em primeira-mão. Chamavam-se Censurados mas não deixavam nada por dizer. Faziam da canção o voto de protesto contra o cavaquismo e o serviço militar obrigatório. Como banda punk dos sete costados, acreditavam em causas e não negociavam ideais.
“O primeiro disco de Censurados começa a ser gravado no dia 20 de fevereiro de 90. Nunca me esqueço porque é o meu dia de aniversário. Quando eu o Fred (baixista) entrámos, já meio disco estava escrito. Metade das cançōes foi feita sem a minha guitarra e sem o Fred”, recorda-se Orlando Cohen.
Ainda na década de 80, João Ribas já era uma figura reconhecida da clandestinidade punk como guitarrista dos Kú de Judas, quarteto de Alvalade que tinha como vocalista João Pedro Almendra, alcunhado de Autista, que há-de ser a primeira voz dos Peste & Sida nos essenciais Veneno (1987) e Portem-se Bem (1989). A banda acaba em 1988 mas Ribas não desliga o amplificador. Convida o vizinho dos Coruchéus Samuel Palitos e os Censurados nascem no quarto da mãe. No verão de 1989, chegam Orlando Cohen e Fred Valsassina - o baixista também morador do bairro-código-postal do punk.
Foto de Pedro Lopes (Sumol)
“O Samuel e o Ribas eram os membros originais. Havia o Tiago, um amigo meu que por acaso também tinha feito audição para os Morituri (banda a que Orlando Cohen pertenceu antes de somar uma guitarra à de Luís Varatojo nos Peste & Sida). Só que o Tiago era mais Jimi Hendrix, mais freak. Era um gajo muito fixe mas não se adequava enquanto eu vinha do punk. E era o Ampola que tinha sido dos Crise Total e foi o primeiro baixista dos Censurados. Eu e o Fred entrámos na mesma altura, no verão de 89”, conta Orlando.
Já incompatibilizado com os Peste & Sida, tal como Orlando, Almendra ainda chega a ensaiar uma semana com os Censurados, antes de sair prematuramente. O tempo bastante para deixar marca na letra das incisivas É Difícil e Srs. Políticos. Após um mês de ensaios no quarto de Ribas na casa da progenitora, mesmo ao lado do bunker da porteira, estreiam-se no Bar do Oceano e desde logo conquistam uma legião de seguidores. Concertos posteriores ainda no Rock Rendez-Vous e no Bar das Palmeira, onde se situava a sede do PSR (partido central para a posterior agregação do Bloco de Esquerda), cimentam o nome no circuito. “Era tudo muito rápido mas acontecia naturalmente. Víamos os concertos uns dos outros. Encontrávamo-nos, era tudo cara a cara. A comunicação não era como agora”, descreve o canhoto dos Censurados.
Apanhámos uma geração do pós-25 de abril de adolescentes e pessoal na casa dos vintes. Para eles, tudo era novo. Estavam a descobrir o rock, o punk, as guitarras, os concertos nas escolas e o Rock Rendez-Vous. Acreditávamos que podíamos mudar a sociedade com a mensagem das nossas letras. Éramos todos fãs de bandas. Queríamos chegar ao maior número de pessoas. A nossa música era simples mas tinha identidade. Os concertos eram sempre acontecimentos em que nos encontrávamos com o público e outros músicos.
“Apanhámos uma geração do pós-25 de abril de adolescentes e pessoal na casa dos vintes. Para eles, tudo era novo. Estavam a descobrir o rock, o punk, as guitarras, os concertos nas escolas e o Rock Rendez-Vous. Acreditávamos que podíamos mudar a sociedade com a mensagem das nossas letras. Éramos todos fãs de bandas. Queríamos chegar ao maior número de pessoas. A nossa música era simples mas tinha identidade. Os concertos eram sempre acontecimentos em que nos encontrávamos com o público e outros músicos. Já conhecíamos muita gente. Jantávamos com algumas pessoas, depois íamos para o Johnny Guitar (clube de rock gerido por Zé Pedro e Kalu, dos Xutos & Pontapés, e Alex, dos Rádio Macau) com outras. Era uma comunidade muito grande a crescer”, relata.
Censurados e Peste & Sida eram fruto das relaçōes sementadas entre desconhecidos que se faziam amigos em concertos no Rock Rendez-Vous, ou no Bairro Alto a pagar rodadas em bares como o Gingão até os bolsos ficaram rotos. Muitas das pessoas tinham ou queriam fazer parte de uma banda. Não sabes tocar? Não há problema. Os grupos nasciam da cumplicidade e da vontade de fazer parte de uma contestação necessária para a mudança. Pelo menos, os de genes punk. “Nessas noites de 87/88, cruzei-me muitas vezes com o Ribas. No Gingão e na sede do PSR, na Rua da Palma, onde é agora a sede do Bloco de Esquerda. Peste & Sida e Ku de Judas tocaram juntos uma vez. Fiquei amigo do Ribas. Houve uma cisão com os Peste e fiz uma transição muito rápida para os Censurados. Na terça saí dos Peste e na quinta estava a tocar com os Censurados. Cheguei a ir ver ensaios dos Censurados no quarto do Ribas antes de entrar”, conta. É um relato recorrente de movimentos insurgentes. Um grupo de pessoas da mesma geração, com vivências e referências similares, move-se em círculo e a rotação vai capturando novos intervenientes.
Cohen saiu dos Peste & Sida quando estes se aprestavam para gravar o máxi Homem de Sorte/Reggae & Sida, ainda em 1989. A chama dos Censurados é breve mas faz faísca. E os dois primeiros discos, respectivamente de 1990 e 1991, “são os que melhor exprimem o espírito da banda”, concorda. “Quando entrámos (Orlando e Fred), a banda solidificou. Foi levada mais a sério. Metemos o nosso cunho. Transformámos um bocadinho as cançōes. Por exemplo, a Tu Ó Bófia, a Guerra Colonial e o T’andar de Mota já foram feitas comigo. A outra Instrumental vinha do tempo dos Peste”.
No estágio para o LP de estreia, gravam uma primeira maqueta com seis cançōes, produzidas por Kalu e Cajó, respectivamente baterista e técnico de som dos Xutos & Pontapés, e participam na amostra de nomes emergentes Feedback Vol. 01 com Senhores Políticos / T'andar de Mota e Não Vales Nada. Os primeiros anos de vida são vertiginosos mas a chegada do álbum de estreia não é isenta de peripécias. Isto porque um convite da Ama Romanta de João Peste para editar nunca chega a passar das promessas ao prato. “Num dos concertos no Rock Rendez-Vous, estava lá o João Peste. Ele tinha a Ama Romanta. Encontrou-me no bar à tarde e perguntou-me se não queríamos gravar um máxi. Nós queríamos era gravar um LP. ‘Quanto tempo de estúdio nos dás?’ Ele disse-me ‘seis dias’. Fizemos um contrato verbal (n.d.r. de 300 contos). Nessa altura, cada hora de estúdio era caríssima. Gravámos com o Cajó. Entretanto, passou um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete meses e nada. Não conseguíamos falar com o João Peste. Era raro ele atender o telefone de casa”, recapitula.
No Sete, Jorge Pires considera-o mesmo “o não-acontecimento do ano”. O silêncio de João Peste foi o pretexto para os Xutos & Pontapés, através de Tim (que anda de câmara na mão pelas ruas de Alvalade a filmar o vídeo de É Difícil), avançarem com a ideia antiga de fundar uma editora e agir como o padrinho editorial que já assumiam na estrada ao convidar bandas mais novas para fazer as primeiras partes - em 1990, os Censurados abriram 15 noites da digressão de Gritos Mudos. “Os Xutos viram que o nosso disco estava encalhado. O tempo ia passando e não saía. Não conseguíamos evoluir como banda. Então, criaram a El Tatu, que era uma ideia antiga mas ainda não tinha acontecido. Aproveitaram o facto de o disco estar parado para criar a editora e lançar o disco dos Censurados. Depois editaram Ena Pá 2000, Lulu Blind, Ex-Votos…”, relembra.
Em outubro de 1990, o animal sai por fim da jaula. A memória do processo ainda está fresca. “Gravámos o primeiro disco à noite, em Miraflores, no Tcha Tcha Tcha. Ficávamos lá até às 4, 5 da manhã. Gravámos em quatro noites e tivemos mais duas ou três para misturar. E no entanto, o primeiro é o favorito de muito pessoal”. A ingenuidade da gravação é a prova de que estamos a ouvir os Censurados sem artifícios nem truques. O tempo contado do estúdio faz soar Censurados a sala de ensaio, directo dos amplificadores, peles, pedais e microfones para o vinil. E que disco!
“Ficas a pensar/para a próxima vou-te foder/ficas com raiva/por nada poder fazer”, arremessa João Ribas em Tu Ó Bofia, um convite à rebelião. Há Animais, uma moção de censura à instalação do cavaquismo no poder, o saxofone memorável de Gui (Xutos & Pontapés e depois Despe & Siga) em É Difícil - “É difícil é difícil/Conseguir estar empregado/Mais difícil mais difícil/É ter um bom ordenado”, prega o refrão até hoje - e a folia de A Minha Vida. Porque os Censurados extraíam do descontentamento social o alarme das cançōes. Eram francos, directos e objectivos. Deixavam a poesia para os orfeus e atacavam os problemas com a fúria dos vinte anos. Em poucas palavras, tocavam em feridas por sarar como o colonialismo. “Os soldados todos em formação/Vão todos lutar pela sua nação/Foi num dia, aconteceu em Portugal/Começou a guerra colonial”, atacavam na feroz Guerra Colonial. O refrão critica o sangue - “Só iam p'ra lutar/Só iam p'ra matar” - e a letra responsabilizava o avô cavernoso pelo papel nas antigas colónias. “Foi no ano de 1961/No dia que Salazar citou/Meus bravos, meus nabos, meus compatriotas/Vão para a guerra, calcem lá essas botas”. E mais de trinta anos depois, a reparação ainda se discute enquanto a extrema-direita arrola a direita para um discurso de intolerância e medo. No Blitz, António Pires reconhecia-lhe “raiva e suor, muita velocidade, letras lúcidas e intervenientes”, gabando “o pendor teatral que Ribas transporta consigo”.
Apesar da atracção por uma esquerda renovadora, personificada no PSR, eram mais políticos que politizados. “O Ribas nunca quis relacionar os Censurados com política mas isso estava lá. Até tínhamos a Srs. Políticos e a Revolução. Eu como fã dos Clash e os Clash como a maior banda de contestação social tinha muitas influências desse discurso. Éramos uma banda punk que falava sobre a sociedade. As bandas punk, quer queiram quer não, são sempre políticas. Basta pensar no Anarchy In The UK. Até os Ramones tinham alguma veia política no KKK Took My Baby Away”, defende. Para quem vinha do punk reflectido dos Peste & Sida, “os Censurados eram mais simples”. Cohen esteve dos dois lados e identifica “outras referências nos Peste”, apesar de os Clash serem transversais a ambas. “O Ribas e eu também gostávamos muito de Ramones, assim como de outras bandas de punk/hardcore”. Mais radicais como Dead Kennedys, Misfits, Exploited, Toy Dolls ou GBH.
O Ribas nunca quis relacionar os Censurados com política mas isso estava lá. Até tínhamos a Srs. Políticos e a Revolução. Eu como fã dos Clash e os Clash como a maior banda de contestação social tinha muitas influências desse discurso. Éramos uma banda punk que falava sobre a sociedade. As bandas punk, quer queiram quer não, são sempre políticas.
O disco vendeu duas mil cópias logo nas primeiras semanas. A precariedade de meios era um sinal de transparência. Os Censurados vinham para fazer estragos. E João Ribas é de pronto reconhecido graças à sua corpulência e carisma. “O carisma dele começava por ser físico. Era alto, tinha um visual marcante. Toda a gente reparava nele. Onde ele estava, chamava a atenção. E depois a maneira de ser. Foi um dos pioneiros do punk”. Vestido de cabedal, quase sempre de preto (grande parte da imagem dos Censurados em fotos e vídeos é a preto e branco), com o cabelo comprido, era impossível não reparar nele. Na rua, em palco, na televisão ou em fotografia, Ribas chamava a atenção pela sua pinta andrajosa mas os Censurados eram um todo e os nomes dos quatro eram sabidos. “Eu e o João tínhamos bastante em comum. A visão da sociedade, das injustiças, o haver pessoas muito ricas e outras que dormem debaixo das arcas e não têm dinheiro para comer. Há letras de Censurados que falam disso. (cantarola Srs. Políticos) ‘E o povo enganado/Adora tudo e todos/Não vê que é tramado/Só come futebol e fado’. Eu e o Ribas tínhamos essa sensibilidade para os problemas da sociedade”, revê Orlando para quem ele e Ribas eram os pulmōes políticos dos Censurados. Ribas, acrescenta, “tinha uma maneira muito vincada de ser”. Era alguém “com uma personalidade muito própria, às vezes peace and love, outras não”. Numa banda como Censurados, “é-se muito explosivo. Havia atritos”, constata.
O carisma dele começava por ser físico. Era alto, tinha um visual marcante. Toda a gente reparava nele. Onde ele estava, chamava a atenção. E depois a maneira de ser. Foi um dos pioneiros do punk
Tinham deixado tudo para se entregar à banda. Acreditavam que podiam ser grandes e tinham “o sangue na guelra dos 23/24 anos em que há problemas mas as pessoas lutam pelos objectivos.” No bunker da mãe Ribas, ensaiavam “três ou quatro vezes por semana, duas a três horas por dia”. Era uma dedicação a tempo inteiro sem ordenado certo ou garantias mas inegociável nos ideais. “Mesmo que não tivessemos dinheiro nem para comer”, assume. No barco dos Censurados, houve duas figuras de proa além de Ribas, Orlando, Samuel e Fred. A promotora Aurora Pinheiro, mais conhecida como Lola, ex-manager dos Xutos, a quem Orlando reconhece uma importância capital para “os Censurados terem chegado onde chegaram”.
“Conheci-a na altura do Portem-se Bem. Era promotora das bandas portuguesas na Polygram. Ela entretanto saiu e começou um agenciamento das bandas. No primeiro mês de Censurados, encontrei-a. Estava a atravessar na Avenida dos EUA e ela buzinou. “Não queres ir a um ensaio?” Ela foi, gostou muito e começou a trabalhar connosco. Com os contactos que tinha de imprensa, televisão e rádio, conseguiu divulgar os Censurados”. Na biografia Censurados – Até morrer!, da autoria de Augusto Figueira e Renato Conteiro, Fred Valsassina acrescenta que “nós éramos uns putos, só queríamos era tocar; a Lola não, sabia o que deveríamos fazer e quando o deveríamos fazer. Foi muito importante naquela fase. Se não fosse a Lola, se calhar não tinha havido Censurados”. Foi a manager a impulsionar a primeira gravação.
Televisōes, rádios e imprensa reagiram. A música portuguesa fazia parte da vida das pessoas. As multinacionais assinavam (os Censurados editaram os dois primeiros álbuns pela independente El Tatu e o terceiro Sopa pela EMI/VC), as rádios faziam-se ouvir - o circuito de rádios locais tinha força junto das suas populaçōes. Surgiam revistas, jornais e fanzines. A crítica exercia influência. Apesar de incómodos, os Censurados estavam por toda a parte. O compromisso entre rebeldia e ambição era aceite. E quem melhor que os Xutos & Pontapés para ajudar na descolagem de uma banda que queria ser de longo curso.
“O Zé Pedro adorava os Censurados. Tentou ajudar-nos além das primeiras partes da digressão do Gritos Mudos. Se as bandas não tivessem um disco, não ia a lado nenhum”, confirma. “Os Xutos eram o maior exemplo para nós e para muitas bandas. Quando gostavam de outra banda, faziam questão de convidar para fazer as primeiras partes, quando nenhuma outra banda tinha feito isso por eles. Já tinham atingido um certo estatuto mas faziam questão de ajudar. Queriam fazer estas bandas chegar a um público maior”. Censurados, Peste & Sida e Sitiados, entre outras, receberam essa prova de confiança e amizade.
Na ressaca da aclamação popular de Circo de Feras e 88, os Xutos & Pontapés foram instrumentais para a profissionalização do meio da música ao vivo. Orlando concorda e dá o exemplo dos Censurados. “Começou a haver mais concertos, mais dinheiro, mais bandas e as empresas de som também se profissionalizaram. Com mais espectáculos, veio mais experiência”. É um período de grande evolução do amadorismo para a especialização. E os Censurados andam por lá de Bragança a Lisboa. Na série da RTP A Arte Elétrica em Portugal, o baterista Samuel Palitos conta a história do dia em que a primeira parte de uma noite em Évora foi assegurada pelo cantor de música ligeira Clemente. Com cadeiras…
Concertos, ensaios, gravaçōes. O ciclo repete-se e um ano depois de Censurados chega Confusão. “O primeiro disco tem mais o cunho do Ribas porque ele é que fazia a maior parte das letras. Fez quase todas no primeiro. No segundo disco, já nos conhecíamos melhor a tocar porque já tínhamos gravado a maqueta e o primeiro disco, e ensaiado mais”, introduz. “O segundo já tem mais o meu cunho pessoal. Tem duas músicas feitas quase por inteiro por mim: a Venenosa e o Americano Gordo, que também é politizada”. A segunda tem uma história curiosa que mete o Johnny Guitar, um inglês e Cuba. “Havia um inglês que servia cervejas no Johnny Guitar. Ele contou-me que uma vez foi a Cuba e viu um americano a pavonear-se todo gordo pelas ruas, entre o pessoal pobre”.
Para o guitarrista, “já é um disco um bocadinho diferente do primeiro”. Enquanto Censurados soa a sala de ensaios, Confusão já transparece estúdio. O som tem outro brilho, o espaço de cada um é mais claro, sobretudo a secção rítmica, mas apesar de a banda estar mais oleada, continua a verter sujidade e a varrer o lixo. Kaga na cultura é um desabafo sobre o conservadorismo de valores, a falta de visão e a incapacidade em reconhecer a cultura como um movimento perpétuo. As duas secçōes de Revolução sinalizam uma banda a descobrir outras assoalhadas da casa como o sofá onde se despem Loucos por Sexo (a capa é explícita no desejo). Abre-se uma brecha para o funk em Americano Gordo e para o ska em Todos No Mesmo Barco, a mais evoluída. A Coxa joga com a ambiguidade da palavra porque o sarcasmo é uma das mais contundentes armas do protesto.
Vão ao Printemps de Bourges, em França, e alinham uma mini-digressão na Alemanha. Na estrada, é grande a festança. “A nossa opção é tocar e curtir”, respondiam ao Sete em 1991. “Estávamos a viver a nossa vida. Parece que foi um filme, tanto os Peste como os Censurados. Os ensaios, as carrinhas, os hotéis, lutas nos quartos, era uma maluquice”. Os concertos são em bom número mas as vendas não ultrapassam as do primeiro. Nem tudo o que parece é. “Tínhamos a fama mas não tínhamos o proveito. Entrava no autocarro, pediam-me autógrafos mas no bolso nåo se reflectia. Às vezes não tinham nem 1 escudo”, lamenta. Aconteceu com Orlando. “Eu vivia em casa de amigos. Não tinha casa, não tinha ordenado, não tinha nada. Só tinha o dinheiro da banda para comer, pagar o passe e pagar a sala de ensaio. Quando estávamos mais de um mês sem dar um concerto, chegava a passar fome”.
Tínhamos a fama mas não tínhamos o proveito. Entrava no autocarro, pediam-me autógrafos mas no bolso nåo se reflectia. Às vezes não tinham nem 1 escudo (…) Vivia em casa de amigos. Não tinha casa, não tinha ordenado, não tinha nada. Só tinha o dinheiro da banda para comer, pagar o passe e pagar a sala de ensaio. Quando estávamos mais de um mês sem dar um concerto, chegava a passar fome
“A nossa música não era mainstream nem isto era Inglaterra em que se podia viver de uma banda como a nossa. Nem tínhamos direito ao subsidio de desemprego. Não era fácil resistir com o que a banda dava. Principalmente no início. E mesmo no fim, não dava para alugar uma casa. A banda estourou antes de dar esse passo. Acredito que com mais um disco ou dois conseguíssemos”. Vítimas de um sistema que contestavam, os Censurados ainda comeram a Sopa mas já não tiveram forças para o prato principal. E vem-nos à memória um manifesto de reciprocidade.
Diz-me porquê não há nada a fazer
Se iremos vencer ou iremos perder
Tentaremos mudar, o que há de mal
Nem que tenhamos que correr Portugal
Seja feita vossa vontade
Assim a mentira como a verdadeSeremos censurados nesta vida
De nascer até morrer
Perderemos a vontade
De conseguir entender
Censurados e Confusão foram editados pela El Tatu em 1990 e 1991, respectivamente, e reeditados com extras pela Rastilho em 2014. Devido a um erro da distribuídora Polygram, nas lojas do Porto o disco dos Censurados vinha dentro das capas de Uno Dos dos Repórter Estrábico. Devido a um outro erro, o tema “Instrumental” não foi incluído no vinil. Ambos estão disponíveis nas plataformas digitais, tal como Sopa (1993, VC). Em 1999, os Censurados regressaram para gravar a versão de Enquanto a Noite Cai para o álbum XX Anos - XX Bandas de tributo aos Xutos & Pontapés. Censurados ao Vivo é o registo desse reencontro. Em 2014, João Ribas morreu. Orlando Cohen ainda participou no regresso dos Peste & Sida com Tóxico, em 2004, e tem quatro álbuns instrumentais a solo. Samuel Palitos é o actual baterista dos GNR, depois de ter feito parte de bandas como Kick Out The Jams, Sitiados, Rádio Macau, Lulu Blind, Linha da Frente e A Naifa. Fred Valsassina trabalhou vários anos no escritório dos Xutos & Pontapés.
Adorei o artigo!
Adorava a banda que o meu irmão apresentou, ouvíamos bastante as bandas portuguesas como Xutos, Mata ratos, Peste e Sida, GNR, Sitiados...bandas que chegamos a ver em Odivelas, sítio onde viviamos.
Muito bom! Excelente mesmo!