Carlos Paredes - Movimento Perpétuo
“Sou um homem que toca guitarra … que tem isso?”, perguntava com modéstia Carlos Paredes. A simplicidade do homem ajuda a explicar a grandeza do acto. Paredes era funcionário administrativo do Hospital de S. José. Amador para a música, nunca aceitou negociar a ética. “Gosto demasiado da música para viver às custas dela”, respondia quando o interrogavam sobre a não-dedicação a tempo inteiro. “Era muito modesto, nunca achava que as coisas estavam bem”, confirmava o técnico Hugo Ribeiro (o mesmo de Amália Rodrigues), citado nas páginas dedicadas a Movimento Perpétuo pelo livro Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa, editado pelo Público em 1997.
Filho do mestre Artur Paredes, o apelido começou a fazer escola em Coimbra com os avós Gonçalo e José, e o tio-avô António. Com o pai aprendeu “a tirar da guitarra sons mais violentos, como reacção ao pieguismo langoroso a que geralmente a guitarra portuguesa estava ligada”. Antifascista desde a sua juventude, foi preso em 1958, permaneceu um mês na cadeia do Aljube e foi enviado para Caxias. Julgado em Tribunal Plenário (1959), é condenado a 20 meses de prisão e 3 anos de suspensão de direitos políticos, com pena suspensa durante 3 anos. À data do julgamento e libertação, já tinha cumprido 15 meses de prisão. Chega a ser afastado da função pública por pertencer ao PCP. Posteriormente, foi reintegrado.
Quando Carlos Paredes aquece as turbinas para Movimento Perpétuo, já tinha tocado com Charlie Haden, Adriano Correia de Oliveira e Carlos do Carmo, escrito para bandas sonoras e assinado o imortal Guitarra Portuguesa. As gravaçōes foram feitas a entre 1969 e 1971 à noite e ao fim de semana. “Desde as noite e, por vezes, até ao nascer do dia”, descrevia o técnico sobre as provas de esforço madrugada dentro. Como não havia um produtor, toda a responsabilidade caía sobre os ombros de Hugo Ribeiro. Paredes “tocava com um vigor extraordinário, era preciso uma hora só para a correcta colocação do microfone. Senão, os sons das cordas pareciam alfinetes”, explicava.
Pelos motivos referidos de ordem profissional, o disco demora a ser exportado do estúdio para o vinil. Paredes era um perfeccionista e Movimento Perpétuo expōe-no no auge das suas capacidades mas o elevar à condição de altar deve-se à humanidade concedida ao virtuosismo. Se há música difícil de racionalizar, este é um caso eloquente. Haverá vocábulos para descrever esta transcendente forma de comoção? Movimento Perpétuo sente-se. É habitado por uma presença gigantesca do invisível. Deus? Uma fé espiritual? Por certo, um hino à liberdade. Em 1971, talvez fosse uma forte candidatura à hipótese de Portugal se libertar do fascismo. É isso que permite a ascensão da complexidade instrumental à magnanimidade colectiva.
Nas mãos de Carlos Paredes, o perfeccionismo é uma obsessão mas esse Movimento Perpétuo de imperfeita repetição é o pulsar não apenas da exigência mas de uma obstinação por ser livre. “A música que faço é um produto das circunstâncias imediatas do tempo em que eu vivo”, afirmava ao Se7e em 1983. O processo não era fácil. “Como inclinava muito a cabeça sobre a guitarra, o microfone apanhava o som da respiração - era um problema que só se resolvia com uma mola de roupa no nariz”, contava o técnico no livro citado.
Explica-se assim porque, ao longo do disco, se ouve a respiração profunda do guitarrista de uma ponta à outra - Movimento Perpétuo parece ter sido gravado ao ar livre por esse motivo. “Se ele se mexesse muito, a direcção do microfone ficava logo errada e tinha de se deitar fora a gravação”, adicionava o técnico. Os pequenos ruídos hoje facilmente corrigíveis são uma marca de humanidade. Enquanto o inaugural Guitarra Portuguesa era uma estreia primorosa, Movimento Perpétuo roça a perfeição.
As variaçōes ressonantes das cordas de Paredes transmitem dinâmica e ritmo mas nunca se perdem no virtuosismo inconsequente. O lamento ligeiro do choradinho que por vezes reduz a guitarra portuguesa a uma caricatura pobre e actualmente turistificada é em Movimento Perpétuo um mergulho em águas muito mais profundas, muito para além da miséria sentimental e da pobreza de estados. O guitarrista confessava “uma propensão pessoal para o virtuosismo e o melodismo de sugestão violinística”. Como o próprio denunciava, “a guitarra portuguesa é um intérprete muito pouco fiel de toda a música que não tenha saído das suas cordas, de preferência pelas mãos do próprio executante”. A razão está na necessidade de “empregar uma técnica híbrida de mão direita, um misto de plectro e primitiva dedilhação do alaúde”, para afirmar as propriedades distintivas de outros instrumentos cordofónicos, escrevia nas notas da primeira edição em vinil.
Paredes deambulava e Fernando Alvim, seu co-piloto desde 1961, seguia-o. No duas cançōes da banda sonora de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, um terceiro elemento aguça o exotismo. Paredes queria um flautista e Hugo Velez, da banda filarmónica da GNR, foi convidado a viajar entre as duas estaçōes deste comboio. Foi ele quem ensinou o virtuoso acordeonista brasileiro Sivuca, que acompanhou Julie Andrews em alguns dos filmes da actriz, a tocar.
Os trinta e um minutos de Movimento Perpétuo têm uma pulsão sagrada. Física na canção titular, barroca nas Danças Portuguesas, imaterial em Variaçōes em Ré Menor e ascética em Variaçōes Sobre uma Dança Popular. Quaisquer legendas que se lhe possam dar, estarão sempre aquém da imensidão da verdade. Paredes tocou no sobrenatural. Seria a guitarra a extensão tangível da carne da Paredes ou seria Paredes o braço humano de uma guitarra maior que a vida? Diz-se que a paixão era tanta que um dia, ao perder a guitarra no avião, pensou em suicidar-se.
“Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco...E eu não compreendia isto. mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas”, reconhecia e aceitava na série Grandes Portugueses da RTP. “Quando eu morrer, morre a guitarra também. O meu pai dizia que, quando morresse, queria que lhe partissem a guitarra e a enterrassem com ele. Eu desejaria fazer o mesmo. Se eu tiver de morrer, morrerá comigo a minha guitarra”, profetizava. Carlos Paredes partiu a 23 de julho de 2004, ano da graça do Vol. 1 dos Dead Combo, mas hoje ao ouvirmos Tó Trips, o Expresso Transatlântico, guitarristas como Peixe, Filho da Mãe e O Gajo, ou reconstruçōes como a de Sam The Kid em Viva!, a partir de um sample, sabemos que a sua memória está em boas mãos.
Movimento Perpétuo é património imaterial da música portuguesa, disponível em todos os formatos físicos e digitais. Em 2011, Guitarra Portuguesa e Movimento Perpétuo foram reeditados com bom som pela Drag City. Ben Chasny, dos Six Organs of Admittance, banda central no catálogo da independente americana, reconheceu em Paredes um dos "guitarristas preferidos de todos os tempos".