Capitão Fausto - Pesar o Sol
Ainda a Gazela se refrescava do primeiro sprint e já os Capitão Fausto pensavam no salto seguinte. Literalmente, já que seria o primeiro álbum pensado como um todo. No verão de 2012, fugiam de Lisboa. como quem escapa de casa dos pais, e retiravam-se na Adega de Quinta de Santo Amaro, no centro litoral de Portugal, situada na aldeia de Cadima em Cantanhede. Eram “miúdos com 19/20 anos que ainda vivem em casa dos pais e encontram em retiros a independência que ainda não têm. Conseguimos estar completamente focados. Sair de Lisboa, não estar com amigos, evitar distracçōes”, recorda Domingos Coimbra, tripulante das dez voltas ao sol do segundo álbum dos Capitão Fausto.
“O Gazela foi o álbum de putos a entrar no estúdio para fazer música pela primeira vez. Eram as dez primeiras cançōes que fizemos como banda. Não havia um critério ou um pensar em álbum. Foi literalmente chegar ali, ligar os microfones e gravar. Felizmente, correu muito bem. Levou-nos a muitos sítios do país”, introduz. “O Pesar o Sol é a primeira vez que nos sentamos como banda a querer fazer um álbum do princípio ao fim com uma intenção. Saber usar o estúdio, fazer um álbum mais expansivo e coerente. É o primeiro passo artístico ponderado. Foi muito importante para nós”.
O motivo da revisitação é o concerto de aniversário de Pesar o Sol, no mesmo festival onde os Faustos se encontravam entre as poucas centenas de olheiros da estreia de uma certa banda australiana em Portugal. Estávamos em 2011 e os Tame Impala perdiam-se num Super Bock Super Rock com Arctic Monkeys, Arcade Fire, Portishead, The Strokes, Lykke Li, Slash…Em letra pequena, o nome surgia no cartaz ao lado de Nicolas Jaar e abaixo dos The Kooks, El Guincho (futuro produtor de Rosalía) e James Murphy na pele de DJ já a fazer o luto dos LCD Soundsystem. Já lá vamos porque na retrospectiva de Pesar o Sol há diferentes radiações.
Todos os álbuns dos Capitão Fausto representam um ciclo diferente, e este não foge à regra, apesar do imediatismo do pós-Gazela. Ensaiavam regularmente no Príncipe Real na cave da casa do pai de Domingos, perto da hamburgueria Honorato que em sua honra criou o hamburger Capitão Fausto. “Ainda estávamos na fronteira de miúdos a descobrir tudo - uma banda, os concertos - mas isso deu imensos frutos. Sempre tentámos acrescentar imenso trabalho à sorte e ao privilégio que temos. O Pesar o Sol já vive dessa entrega e compromisso dos cinco”, reconhece o baixista para quem a banda só teve “uma noção mais exacta do seu lugar, dos sítios onde quer ir e da carreira” no famigerado Os Dias Contados, de 2016. Entre o adolescente Gazela e o aceitar da finitude desse clássico dos tempos modernos, há Pesar o Sol. Depoimento sónico, insurgente e dilatado de miúdos a curtir a vida com disciplina de escritório em sexta-feira casual.
“É um período complexo. Estávamos a acabar cursos e a ter cada vez mais concertos e motivos para sair de Lisboa, tocar e ir a festivais. Para mim, foi a altura mais difícil dos estudos. Muito mais facilmente deixava de estudar para ir a um concerto do que deixava de dar um concerto para ir a um exame. Ao fim de alguns meses e algumas cadeiras, começava a fazer mossa. Alguns de nós acabaram os estudos mas isto depois vai gerar um Grito do Ipiranga quando nos mudamos para Alvalade e fazemos Os Dias Contados. Tomámos todos a decisão de tentar fazer da música a nossa vida. Deixámos de fingir. O Pesar o Sol ainda está nessa curva em que temos imensas obrigaçōes académicas”, descreve Domingos Coimbra. A mocidade não tinha ainda chegado ao fim.
Pesar o Sol é gravado no verão de 2012, um mês depois de ter sido escrito no Paço da Chã do Souto, em Viana do Castelo, a 50 quilómetros de Paredes de Coura mas só vê a luz em janeiro de 2014. “Isso deve-se a burocracias e não tanto a nós. Logo a seguir ao Gazela, começámos a compor o Pesar o Sol. No verão de 2012, ele é gravado mas só sai em 2014. Fica um ano e meio parado. Na altura, mudámos de editora e voltámos atrás com decisōes”, recorda. Provavelmente, foi melhor por diferentes motivos. “Permitiu-nos tratar melhor o som e até a nossa carreira”, assume.
As sessōes decorrem na adega de Cadima, onde o técnico de som da banda Nuno Roque reinstala o seu equipamento (e onde há-de ser feito o retrato vitoriano da capa). A gravação tira partido do estúdio como um laboratório espacial. O nervo de Maneiras Más é interrompido por um devaneio psicadelista. Parece que o foguetão vai explodir, tal o volume da massa instrumental de som, mas os Faustos mantêm o controlo da gravidade. “É um álbum de procura da expansão. Por vezes, até nas letras do Tomás. Muitas delas são consideraçōes gerais sobre a nossa condição. Todos nós estávamos a beber as influências do psicadelismo”, reconhece.
“Ao ouvir o álbum de novo, achei o som vivo e intenso, desde o volume da bateria aos efeitos e delays “no prego”. Na altura, alugámos um [pedal] Roland Space Echo para usar em estúdio. Depois, aproveitámos isso para os outros álbuns”, examina. Pesar o Sol é modelar na sincronia entre potencialidades técnicas e processo criativo. O estúdio é um sexto instrumento e elemento. Tudo era novo na exploração dos Faustos. Tomás Wallenstein, o vocalista e guitarrista, usava o mesmo pedal voador característico de discos incontáveis de rock dos anos 70, redescoberto por uma nova vaga de psicadélicos e espacialistas como Kevin Parker dos Tame Impala. As comparaçōes foram automáticas.
“Nós estávamos naquele mítico Super Bock Super Rock, de 2011, com os Tame Impala a tocar o Innerspeaker para 200 pessoas. Na altura, já eramos completamente entusiastas daquela banda. Estivemos perto da fonte. É natural que essas referências tenham acabado no álbum. Acho completamente legítima a comparação aos Tame Impala mas já existiam no Gazela. Já andávamos a ouvir bastante o Innerspeaker. Onde se nota mais é na Tui e depois há uma referência indirecta um bocado técnica. O Tomás usava um pedal Small Stone, que o Kevin Parker também usava, em tudo”, concorda Domingos.
À distância de uma década, o baixista considera “um elogio” e isola dois momentos específicos - “a introdução da Maneiras Más com uma guitarra ao contrário” e citada Tui - mas “dez anos depois, aquelas cançōes não soam ao Innerspeaker nem ao Lonerism”. Na altura, talvez não tenha sido tão pacífica a associação, sobretudo pela insistência. Em entrevista ao Bodyspace, Wallenstein gracejava com a referência ao nomear os Tame Impala de “Capitão Fausto australianos”. Domingos Coimbra desdramatiza. “Através dessa narrativa ganhámos alguns fãs e entusiastas que se calhar não acompanharam o resto da nossa carreira. As referências contagiam-se umas às outras. Acho que não nos fez muita impressão na altura”. O mesmo Wallenstein defendia-se na altura ao explicar que bandas como os Tame Impala, Temples e Toy bebiam das mesmas fontes. O colega de banda concorda.
"São os primeiros anos de Internet e de música. Todos os dias partilhávamos um álbum novo de música antiga, nova para nós. Foi um período muito fértil. Daí, na minha opinião, o revivalismo ter sido tão preponderante. Foi uma onda com dezenas e dezenas de bandas, só em Portugal. O pai do Tomás deu-nos um presente incrível. Ofereceu a cada um de nós um CD com uma parte da discografia dos Gentle Giant. Juntávamo-nos para ouvir numa altura em que ainda não sacávamos música. Por um lado, estávamos a ouvir bandas a fazer revivalismos mas por outro estávamos a ir à fonte dessas cançōes e desses discos. O Pesar o Sol bebe dessas referências”. Assunto arrumado.
Como bons vivants da história do rock, Pesar o Sol não podia prescindir dos seus mitos, lendas e…batalhas. A Célebre Batalha de Formariz onde os Capitão Fausto entraram com fé na festa e saíram com alguns olhos negros. Mal sabiam que, entre socos e pontapés, a arte da guerra seria o parte do single de avanço. A acção passa-se na aldeia de Formariz, perto de Paredes de Coura, onde se encontravam em estágio criativo. Domingos Coimbra o episódio. “Dia 8 ou 9 do retiro. Fartos de já estarmos fechados a fazer música, um grande amigo nosso que gosta de festa foi ter connosco. Levámos a intensidade de uma festa caseira para uma festa na aldeia de Formariz. Estava a haver um concerto e éramos o grupo mais divertido. Fico à conversa com o meu amigo António Branco e do nada a banda que estava a tocar pára. Em palco, já estavam alguns Faustos. De repente, a aldeia toda com aquela desconfiança um bocado nortenha, olha para nós e ficamos ali no mapa. Fomos expulsos da aldeia. Todos”. Gargalhada. E continua.
“Até me lembro de ter havido uns gajos que chegaram e nos disseram: ‘estão ali uns tipos parecidos convosco a levar uma tareia’. Adorei a expressão. Aquilo era ele a dizer-nos ‘estão ali uns lisboetas armados em espertos’. Maneiras más para chegar a boas conclusões reproduzidas na letra de Tomás Wallenstein.
Em Portugal da França
Reage quem suporta
Aos passos desta dança
E ao pão da AljubarrotaDeixem os outros falar
Só me dão ideias para cantar
Da batalha campal, sem lesões graves para a carreira, nasceu uma canção icónica. Para a banda e para a aldeia, com sequelas em Paredes de Coura. “O engraçado desta história é que tudo aquilo não passou de uns murros. No dia seguinte, estávamos em Paredes de Coura e apareceu uma malta a dizer: ‘estivemos convosco na batatada’. Começámos a achar piada e depois de a canção ter saído, voltámos a Formariz, conhecemos alguns velhos que se picaram connosco e aquilo ficou uma história da aldeia e da relação com aquela zona, que é muito boa. Passamos a vida a fazer retiros lá e já tocámos em Paredes de Coura. Houve até uma edição do festival em que fomos tocar a Formariz. Muitas das pessoas estavam lá. Lembro-me de estar a ouvir uma entrevista em que um senhor dizia ‘sim, sim, estive lá na batalha contra eles’.”
O sol é a metáfora perfeita de condição humana de expansão e inércia. “Nunca faço nem metade/do que me diz a vontade”, aceitava Tomás Wallenstein em nome dos Capitães logo na primeira canção do disco. Seis minutos de aviso à navegação sobre as intençōes próximas. Ninguém estava ali para enganar ninguém e os Fausto estavam apenas a relatar a sua história, igual à de tantos outros na encruzilhada entre o céu e a terra. “Concordo com a ideia de inércia e sobre a forma como ela pairava sobre nós”, assume. “A expressão Pesar o Sol vem da mãe do Manel [Palha]. O sol pesava-se quando se navegava. Lembro-me de fazer parte das nossas conversas e de estar ligado à ideia de descoberta. Fazia todo o sentido. E depois o Manel tinha uma música à guitarra com uma [guitarra] Teardrop dos anos 60 que lhe tinham emprestado. Ele tinha gravado uma pequena composição, que era o Pesar o Sol. No Gazela já tínhamos gostado da ideia de haver um separador”. Uma pequena maravilha de dois minutos entre a contenção de As Flores do Mal e o rasgo d’A Célebre Batalha de Formariz.
O guião volta a Paredes de Coura. Para o grande final, estava guardada a Lameira, aterragem em segurança numa outra vida, num outro planeta - pequena aldeia onde em 2019 já só restava um último habitante, dista dez minutos de carro. Domingos Coimbra conta um episódio metafórico de um álbum de felizes acidentes ocorridos no Minho.
“Não estávamos a conseguir gravá-la muito bem e então deixámos para a noite. Fomos beber um copos e voltámos. No final do take, tinha corrido tão bem e eu estava tão excitado e com os copos, que comecei aos berros e estraguei o take. Foi preciso imenso tempo para se conseguir tirar a minha voz. Ganhei a alcunha do estraga-takes porque às vezes me chego à frente e digo que foi um bom take. É o pior que se pode fazer. Algures no fim da Lameira, ainda se ouve a minha voz distante.
Pesar o Sol é um clássico instantâneo com marcas inevitáveis de um tempo que não afogou os Capitão Fausto numa corrente. Pelo contrário, canções como Prefiro Que Não Concordem ou a inevitável Litoral ganharam nitidez distanciadas da luz solar para reivindicam o direito a ter vinte anos para sempre. O ciclo solar ainda não estava fechado, além da agenda diária de ensaios, concertos e promoção. Poucos meses depois, uma versão da magnífica Marcolino, de Fausto, prenunciava um chamamento.
Fomos desafiados a fazê-la nos quarenta anos do 25 de abril, a convite do [investigador e radialista] João Carlos Callixto. Andávamos a descobrir Fausto e Zé Mário Branco a entrar mais por esse universo. Esse convite surge numa altura em que tínhamos conhecido um amigo do Manel, o Diogo Rodrigues (Horse), que tinha a sala em Alvalade para onde depois nos mudamos. Essa versão do Marcolino fez com que gravássemos essa versão na sala que há-de ser a nossa com o Horse. Foi o primeiro passo para o resto da carreira (…) Isso acontece na altura em que saímos da nossa sala antiga, a cave em casa do meu pai e começamos a Cuca Monga”. Era o princípio da contagem decrescente dos dias.
Pesar o Sol é revisitado esta quinta-feira, 18 de julho, no Super Bock Super Rock