Buraka Som Sistema - From Buraka To The World
Como fazer compreender a alguém na casa dos vintes fenómenos tão díspares e semelhantes como os de Dino D’Santiago, Julinho KSD, Deejay Telio ou Blaya? Como demonstrar que o que hoje é luminoso foi invisível num passado não muito distante? Como explicar um micro-organismo autóctone que se infiltrou no corpo e se universalizou? Revisitando a história para fixar uma memória necessária na leitura de um presente reconfigurado.
Na retrospectiva da produção musical portuguesa deste século, os Buraka Som Sistema são a banda mais transformadora. Se sobretudo ao longo dos primeiros anos polarizaram opiniōes entre a admiração e a rejeição, o tempo só deu razão ao seu idealismo. Hoje o nome dos BSS é de transversal conhecimento, não é certo que a sua importância seja reconhecida em pleno. Não deve haver armas mais internacionalizadas em clubes de Bogotá a Jakarta do que Wegue Wegue, Sound of Kuduro ou Yah. Antes de mais, fizeram música para o corpo mas, até por isso, entender a sua importância é outra história. Apesar de se terem retirado de combate em 2016, estão por toda a parte.
Tudo começou dez anos antes com From Buraka The World, a primeira lança de uma África lisboeta restrita à clandestinidade. A memória das quebras no portátil devido ao calor sufocante do Clube Mercado, onde os Buraka eram residentes, ainda está viva mas o tempo é implacável. Passaram-se quase 18 anos desde que João Barbosa (hoje Branko), Kalaf e Riot deixaram cair o 1-Uik Project, quando se aprestavam para editar o segundo álbum Lisa, e apostaram numa ideia inovadora de moldar as bases frenéticas do kuduro, ouvido nas cassetes compradas em feiras clandestinas na Praça de Espanha, às mais avançadas técnicas da electrónica fervilhante das caves de Londres. O “kuduro progressivo” que nos primeiros anos serviu de chapéu para a imprensa local e internacional nomear e explicar aquilo que o corpo não podia decifrar por palavras. Intensidade, êxtase, euforia e celebração. Esta música podia não ser panfletária mas era profundamente politizada, apesar de não recorrer às ferramentas tradicionais da canção de protesto. Um computador, dois CDj, uma mesa de mistura, um vocoder, sintetizadores e microfones bastavam para desestabilizar.
Lisboa tinha um novo som e a ascenção dos Buraka foi meteórica. Em pouco mais de dois anos evoluiram de colectivo em fase de testes numa cave perto do Jardim da Parada, em Campo de Ourique, para festivais da dimensão do Roskilde e Glastonbury, ou, em Portugal, do Optimus Alive (onde fecharam o palco maior de uma noite esquizofrénica com Bob Dylan e os Evanescence), Sudoeste (onde actuaram à mesma hora dos Daft Punk para 500 malucos da pátria) e Hype@Tejo, onde foram o grande destaque de uma noite com os recém-descobertos pela crítica especializada Hot Chip. Foram capa do Ipsilon ainda sem disco editado, em entrevista e artigo assinados pelo jornalista Vitor Belanciano que os seguiu de perto desde os primeiros sons (a obra literária Não Dá para Ficar Parado, assinada pelo jornalista, conta toda a história). A “heresia” foi depressa justificada pela história, mas continuou a ser usada como arma de arremesso contra as opçōes editoriais do jornal.
From Buraka The World não explica tudo sobre os primórdios dos Buraka mas é um episódio importante da mais revolucionária das histórias da música portuguesa do Séc. XXI. A síntese de uma subida vertiginosa, apesar de todas as resistências de um país monocromático, com grave défice de auto-estima, desconfiado da diferença e culturalmente ainda sequestrado pelas convençōes da cultura pop-rock do Séc. XX.
As objecçōes aos Buraka Som Sistema não se prendiam ao monossilabismo de Yah ou ao minimalismo das formas. Traziam raízes mais fundas num processo de descolonização de mentes por resolver e na incompreensão generalizada de que essa cultura de raiz africana, de Angola, Cabo Verde, Guiné ou Moçambique, era agora portuguesa no bom sentido. Na pista, nas colunas do carro, ou no iPod, Yah resolvia problemas que os políticos não eram capazes. Juntava opostos. Aproximava contrários. O que é natural em 2023, apesar de continuar a acartar preconceitos, era um choque em 2006. Mesmo na comunidade electrónica, onde já tinham obra feita, quer com o 1-Uik Project, quer através da operação da Enchufada, eram encarados com desconfiança.
Há momentos raros em que a música vira acontecimento. Em 2006, Yah era algo nunca antes ouvido. Um beat explosivo, construído a partir da secura do kuduro, diluído numa linha de baixo originária do grime, que no ritmo de Angola não se encontra. “Nunca tinha havido um refrão assim só com três letras”, recordava João Barbosa (então Lil’John) na rubrica Na Pista das Cançōes da Antena 3. “(Era) um esqueleto dos Buraka Som Sistema)”. From Buraka The World foi um corpo em desenvolvimento desde a edição do single em vinil Yah, com Sem Makas no lado B.
Yah foi o fósforo de From Buraka The World e de uma ruptura abrupta com o passado. Estreado no Sónar em 2005 por João Barbosa, tem voz da angolana Petty, de apenas 15 anos e respondeu à necessidade do colectivo, entretanto reforçado pelo kudurista Conductor (recrutado em Angola ao Conjunto Ngongenha que vinham de editar o inacreditável Ngonguenhação), de criar obra própria além das remisturas e edits que faziam as paredes do Clube Mercado, onde mantinham residência, tremer.
A profunda inovação introduzida pelos BSS foi uma surpresa absoluta mas não uma obra do acaso. Toda a história tem uma razão e neste caso não é diferente. Não só a Enchufada já estava activa com a edição do primeiro álbum 1-Uik Project e de Chega de Saudade, o segundo de Melo D, como estavam rodeados de músicos com uma visão diferente do futuro. Por exemplo, João Gomes e Francisco Rebelo, dos Spaceboys, o satélite dos Cool Hipnoise, em que Kalaf ocupava o lugar de declamador, que em Sonic Fiction plantavam a semente do que seria o som dos Buraka.
É nesse álbum que Kalaf solta o “Lisboa não se passa nada” que durante anos há-de servir de bandeira de agitação (e não de inércia ou desistência). Se olharmos para alguma da música mais inspiradora produzida em Portugal ao longo deste século, dos Buraka a Sam The Kid, B Fachada, Conan Osiris ou Slow J, ela partiu não apenas da inspiração mas também da confrontação para preencher vazios.
No caso dos BSS, essa recusa em aceitar os modelos pop/rock dominantes como via única resultou, paradoxalmente, numa genuína celebração colectiva que demorou alguns anos a ser aceite pela indústria local, quando dificilmente aquela música poderia ser mais portuguesa. Porque o pensamento conceptual e global de João Barbosa, Rui Pité e Andro Carvalho rompia com os melodramas paroquiais do costune.
Aquilo que escutava em cançōes como Buraka Entra! era música sofisticada, desenvolvida em laboratório, a partir de apreensōes de ritmos e dizeres das ruas de uma Lisboa - “os Buraka são música de Lisboa”, defendia Kalaf - que nem começava em Campo de Ourique nem terminava em Telheiras. Tinha braços maiores no Monte da Caparica, na Brandoa, em Odivelas ou na Moita. Essa saudável confusão entre “alta” e “baixa” cultural tanto atraiu público de classe média alta, como dos bairros sociais, além de melómanos curiosos com o fenómeno, e uma primeira geração de ouvintes de hip-hop, educados pelo beat digital e não pelo bombo da bateria.
Os BSS sintetizaram esses mundos todos numa linguagem muito própria, beneficiaram da pedra partida por bandas como os Da Weasel - uma referência enquanto colectivo e massa sonora -, Boss AC e Sam The Kid, com quem João Barbosa trabalhou de perto no superior Pratica(mente). E há o factor comunicação. A primeira vaga das redes sociais personificada no MySpace, onde Yah e Wawaba se propagaram, à falta de rádios, além das de nicho, para espalhar a nova mensagem.
“O dia em que a M.I.A. decidiu colocar-nos no top 8 foi o melhor dia do mundo", recordava João Barbosa em entrevista ao Blitz. De repente, os Buraka Som Sistema podiam contactar com os pares do mesmo atlas musical: Diplo, os Bonde do Rolê, DJ britânicos como Switch e a referida Mathangi Maya Arulpragasam, com quem viriam a trabalhar em Sound of Kuduro, o sinal da existência global dos BSS. Os ritmos variavam, mas o reinado dos bailes locais estava a chegar, como, mais uma vez, o tempo confirmou.
Todas as peças encaixavam mas sem essa forma de comunicar, uma operação tão desinstitucionalizada e inóspita para a indústria poderia não ter tido o mesmo efeito. O faça-você-mesmo só poderia resultar num disco tão sujo e imperfeito, como viciante e doce. Além de Yah, delírios como A Morte do Sonic, uma escala directa entre Luanda e Londres, ou D...D...D...D..Jay são pura curtição. E revolução.
Os Buraka Som Sistema foram o paralelo português com a reforma da música popular proposta e concretizada por Kanye West. E as primeiras reacçōes são comparáveis às ondas de choque provocadas pelos Heróis do Mar na madrugada dos anos 80 porque mexem com valores semelhantes: identidade, povo e cultura. Que no caso dos BSS implicaram noçōes de classe, centro, periferia, e rua convocadas por um processo mal resolvido de descolonização. Se hoje já não é ousado falar-se em reconciliação, apesar de não ser uma questão encerrada como é palpável no avançado da extrema-direita, é porque havia um futuro por (re)inventar. E os Buraka tiveram essa presciência que só ocorre quando o vulcão acorda.
From Buraka To The World foi editado em 2006 pela Enchufada e está disponível quer nas plataformas digitais, quer no Bandcamp, Os Buraka interromperam a sua actividade em 2016. Até quando?