Braindead - Blend
Se toda a música tem um contexto particular e colectivo, este é um dos casos de evidentes dessa máxima. Porque Blend só poderia ter acontecido na madrugada dos vintes dos Braindead, num período transitório da música portuguesa na década de 90. Que melhor momento do que o 30º aniversário para recuperar um álbum que é a definição de objecto de culto? Não está disponível nas plataformas digitais, ao contrário do sucessor Room Landscapes, do ano seguinte. Não foi reeditado e tem valor de mercado suficiente para justificar a entrada na categoria do coleccionismo. E, sobretudo, deixou uma pegada até hoje, quer por ter falado por um movimento underground emergente, quer por ser portador de uma personalidade criativa que está para além das referências apontadas, quer ainda por ter inserido no panorama um grupo de músicos ainda hoje activos e relevantes.
Almada. 1993. A cidade operária já é um dormitório ligado aos serviços, mas o espírito de combate continua presente nas ruas. Nas garagens e estúdios, o corropio é constante. O rock é indispensável da urbanidade. Há lojas de instrumentos e escolas de música - factor determinante e pouco valorizado para a geração de movimentos.
A trajectória dos Braindead até ao álbum de estreia, o primeiro gravado em inglês com o selo da EMI/Valentim de Carvalho, é sinuosa. A pré-história dos Braindead começa nos Megaforce, banda formada pelos amigos das ruas de Cacilhas João Nobre e Michael Stewart. Vasco Vaz (que fazia parte dos Putrefaction com o futuro baterista dos Braindead, Marco Cesário) e João Nobre conhecem-se na escola de Luís Espírito Santo, baterista dos UHF e pai do futuro baixista Nuno, e formam os Braindead, ainda na sua versão thrash metal. Fazem parte da formação João Miguel Fonseca (Thormenthor, Plastica, Bizarra Locomotiva), entretanto substituído por Nuno Espírito Santo, e o baterista Marco Franco (nome ligado ao jazz livre que ainda chega a integrar os Peste & Sida e mais recentemente os Memória de Peixe). Michael Stewart é o vocalista.
“Começámos a ouvir cenas como Watchtower que era brutal e, à nossa maneira super naïf, tentávamos fazer aquelas polirritmias. O Marco Franco era o nosso baterista, na altura, e conseguia tocar tudo de Metallica e de Kreator, com uma grande técnica. E gostávamos de explorar essas cenas, mais progressivas como Coroner e Watchtower ou como os Death também vieram fazer mais tarde, mas também cenas de funk”, recordava Vasco Vaz em entrevista à Arte Sonora.
Gravam as maquetes The Final Judgement e The Human Remnants Of.… e chegam a passar pelo antigo Rock Rendez-Vou. Aí começa a metamorfose dos Braindead. “Os Suicidal [Tendencies] também tinham algumas cenas assim de rap. Levámos ao Rock Rendez-Vous um tema que estava na berra, o Funky Cold Medina dos Tone Loc, e pensámos como é que é o público iria reagir e, na verdade, ficou tudo com aquela atitude que ‘o que é esta merda?’ [risos]. Matinés de metal, estás a ver? Ninguém fazia aquilo e isso sempre esteve no ADN da banda, depois foi uma progressão muito natural”, lembrava o guitarrista na mesma conversa. Era um sacrilégio.
Divergências criativas com Marco Franco levam a um fim temporário. Como não encontram um novo baterista, Nuno Espírito Santo junta-se ao pai nos UHF. João Nobre, o irmão Carlos, Michael Stewart e Marco Franco formam os Esborr (nome extraído de uma canção dos Pop Dell’Arte). Quando gravam a maquete, pedem a Vasco Vaz para gravar os solos. O guitarrista fixa-se na banda mas a aventura é curta.
O que parece ser um ponto final nos Braindead é apenas um ponto e vírgula. Voltam à sala de ensaios em 1992 e assinam com a editora Heaven Sound, o estúdio em Cacilhas onde quase todas as bandas de Almada gravam nessa época - perto da garagem do músico Zé da Cadela onde os Braindead ensaiaram nos primórdios.
É um período em que os palcos se avolumam. Não apenas os concertos patrocinados pela política - partidos, câmaras, juntas de freguesia - mas também o hoje quase inexistente circuito de bares. Os Braindead rodam bastante ao vivo, chamam a atenção de imprensa e rádios. E começam a ter um público que vê neles uma resposta local ao que de novo se faz lá fora no rock. “Uma actualização a que os gostos nacionais se foram submetendo”, observa a obra literária Cento e Onze Discos Portugueses do Público.
O mesmo livro chama-lhes, a propósito de Blend, “um ponta de lança das novas formas de fazer rock em Portugal”. É um país musical em reconfiguração, com alguns dos nomes maiores da década de 80 a encerrar a sessão (Sétima Legião, Rádio Macau, Peste & Sida, Mler Ife Dada) e a chegada de uma nova geração mais entusiasmada em olhar para fora do que viver para dentro. Os Braindead não estão sozinhos. De norte a sul, a mescla é grande: WC Noise, Cosmic City Blues, Tédio Boys, More Republica Masónica, Tina & The Top Ten, Ramp, Moonspell ou Supernova. E até em Almada, há uma outra salada com ingredientes parecidos: Wearing Blue Pijamas dos Lesma (banda onde militam o futuro baterista dos Braindead, Marco Cesário, Pedro Quaresma, que há-de ser guitarrista dos Da Weasel, e Nuno “K’ Vicente, depois dos Lovedstone) chega no mesmo ano de Blend, com impacto mais reduzido.
O álbum de estreia dos Braindead é um acontecimento à escala de um underground com raízes no final da década de 80 em bolhas locais como as de Almada e vias secundárias de comunicação como rádios locais e fanzines. As portas do Johnny Guitar, a Meca do rock de Lisboa, já estão abertas. Rádios como a Energia projectam novas vozes e tendências. A imprensa é influente e está atenta. Programas como o Pop Off não só abrem uma janela para a produção videográfica - como é o caso Budapeste, responsável pela afirmação definitiva dos Mão Morta no panorama - como têm uma equipa a criar uma narrativa visual, irreverente e, por vezes, até subversiva. Na MTV, programas como 120 Minutes e Alternative Nation entram pelas parabólicas e mexem com uma geração.
O caldeirão de referências dos Braindead é um poço sem fundo. Blood Sugar Sex Magik dos Red Hot Chili Peppers é o barómetro do funk-rock-rap, que no caso dos Faith No More endurece a relação com o metal - em ambos os casos, com indisfarçável sarcasmo. Black Album dos Metallica uma inevitabilidade. Seattle e o som da flanela a cortar madeira para combater o Inverno menos. A experiência dos Public Enemy com os Anthrax uma hipótese. No Johnny Guitar, Killing In The Name Of já rebenta com as paredes (e os ouvidos dos vizinhos) mas ainda não houve tempo para digerir o scratch de guitarra de Tom Morello com os lança-chamas de Zack De La Rocha.
Esses são os mais óbvios mas há outros, mais ou menos sintomáticos, dos solos dos Iron Maiden à ousadia dos Pop Dell’Arte, à elasticidade de Michael Jackson ou até uma certa melancolia futurista (neo-romantismo?) dos Duran Duran. Tantas fontes só podem fazer dos Braindead muito mais do que uma tradução do Cambridge ou uma importação pelos correios. São quatro personalidades marcantes, Michael Stewart, Vasco Vaz, João Nobre e Nuno Espírito Santo, aos quais se junta o único não-almadense Guilherme Gonçalves na bateria.
Depois de assinarem pela EMI-VC, Blend é regravado nos estúdios da multinacional. À falta de tempo para ensaiar com o baterista, o bombo, a tarola e os pratos são assegurados por um sampler Akai S1000, o zénite da tecnologia de então, disponibilizado pela editora. Até nisso, o álbum tem um som muito particular mas é um todo maior que a soma das identidades o produto da química.
Blend é fresco, inventivo e desassombrado. Ambicioso para as limitaçōes de um país pequeno e de um mercado reduzido, mesmo durante a época áurea da indústria. É um disco de rock inspirado, não por acaso criado em Portugal e, dotado da mais importante das propriedades: a amizade entre quem o fez. O que começara por ser uma brincadeira de amigos, em casa sem amplificadores e em garagens com guitarras baratas, era agora um caso sério mas a simbiose continuava a ser o álibi principal.
Os riffs são virtuosos, o baixo viçoso e os refrōes orelhudos. A poderosa Cry Alone define um diálogo muito próprio entre a tempestade da primeira secção e a bonança do lamento flamenco da guitarra clássica. É o cartão de visita de Blend com alta rotação no Viró Vídeo, apresentado por Zé Pedro na RTP2. O vídeo tem um charme muito de época com a pintura de um graffiti e uma T-shirt com o logótipo dos Braindead, já reveladora de uma visäo conceptual. Tudo isto é novo num país em que programas como Sem Limites e Portugal Radical expōe novas linguagens visuais bebidas na rua como o skate e o surf.
O funk de Never Did Never Will (estranhamente o vídeo deixou de estar disponível no YouTube) é pura sacarina com riff contagiante e refrão saltitão. O acre e o doce coexistem. É uma das receitas involuntárias de um Blend constantemente dominado por linhas de baixo dinâmicas, uma guitarra-ritmo com vida própria, solos primorosos e refrães que se alojam na cabeça. A nostalgia de Days of 87 convive com a resistência de Don’t Cut My Legs. A explícita Juicy Pussy remete para as baladas profanas dos Jane’s Addiction. Love Song é a canção de amor mais curta de sempre. “I am not a monk, but I am funk so if you please kiss my trunk”, de Kiss My Trunk, é a confissão de todos os desejos. Os Braindead estão na flor da idade e deitam a língua de fora. O sexo tinha de lá estar.
São capa do Blitz. Os concertos somam-me em número e importância. Abrem para Xutos & Pontapés (com Zé Pedro como convidado) e Mão Morta (com uma versão improvisada de Budapeste a fechar) em noites mitícas na Incrível Almadense. Fazem a primeira parte dos Faith No More no Campo Pequeno e acaba tudo aos saltos em Cry Alone. Na Figueira da Foz, actuam no mesmo festival da estreia dos Blur em Portugal, que conta ainda com Siouxsie & The Banshees no cartaz. Os Braindead são uma espécie de nova coqueluche do rock português.
Com o guitarrista dos Faith No More, Jim Martin, nos bastidores do Campo Pequeno
Ano e meio depois, chega o segundo e derradeiro Room Landscapes, ironicamente encerrado pela voz adolescente de um tal de Pacman, dos Da Weasel. O irmão de João Nobre por vezes servia de roadie dos Braindead e a doninha já tinha arrancado no início desse ano com More Than 30 Motherfucks. Depois João Nobre levou o Marshall JCM 900 definitivamente para os DW, saltando da guitarra para o baixo. Guilherme Gonçalves, entretanto substituído nos Braindead por Marco Cesário, foi com ele. Entretanto, Vasco Vaz já fazia parte dos Mão Morta e, após o fim dos BD, Nuno Espírito Santo fixou-se como baixista de Sérgio Godinho, dos concertos acústicos dos Xutos & Pontapés e mais recentemente de Carlão.
Blend pode ser ouvido no YouTube. Há um concerto de 1994 em Santiago do Cacém com as cançōes do álbum e o futuro single Black Light, So Bright para ver. A obra dos Braindead merecia uma boa reedição. Obrigado ao Vasco Vaz pelos esclarecimentos e conversas ao longo dos anos. Fotos retiradas do Facebook dos Braindead