Banda do Casaco - Hoje Há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos
Incerteza. Contestação. Desconfiança no futuro. A recriação do cancioneiro popular. Estávamos em 1977 mas podia ser 2023. Hoje há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos era tão presciente do futuro que até uma Geringonça antecipava.
Disco lunático, tinha tanto de espantoso como de divergente, e como acontece com alguns OVNIs, só a passagem do tempo e a distância lhes fazem justiça. A Hoje há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos e à Banda do Casaco que apesar de recuperaçōes distribuídas ao longo deste século - esta em 2006, directamente a partir do vinil já que o master original desapareceu - continua a ser uma charada. É dessa aura misteriosa, feita de desconhecimento (quem foram?) e especulação (porque seriam assim?), que reside grande parte do fascínio.
Antes de mais, a Banda do Casaco “não era nem um projecto de estúdio, nem uma banda ao vivo”, recordava o líder Nuno Rodrigues em entrevista ao Ípsilon em 2013 aquando da edição de uma antologia e de uma caixa com a integral da obra. O propósito passava por contar toda a história, mas o enigma manteve-se. Algo que se explica no movimento perpétuo de um grupo, ou melhor, de uma unidade móvel por onde passaram cerca de 50 músicos, de António Pinho, a Carlos Zíngaro, António Pinheiro da Silva, António Emiliano, Gabriela Schaaf, Né Ladeiras, ou os já falecidos Cândida Branca-Flor e Celso Carvalho (violinista), cujo período essencial se inscreve entre a revolução de Abril e boom do rock português em 1980.
Uma zona cinzenta algo esquecida, entalada entre dois momentos históricos, num país em que a fixação da memória anda à velocidade da ferrovia e facilmente se confunde com saudosismo. Cada álbum era uma adivinha. Enquanto no inaugural Dos Benefícios Dum Vendido No Reino dos Bonifácios, ainda em 1973, sopravam ventos do rock progressivo e sinfónico, em Coisas do Arco da Velha (1976) o impulso é medievalista. Ambos gozaram de reconhecimento junto da crítica, mas estavam longe de ser consensuais. “Nós éramos mal vistos porque não alinhávamos nem com a esquerda nem com a direita e aquela era uma época muito engajada”, recordava Nuno Rodrigues na mesma entrevista. Só para provocar, nas entrevistas diziam “nós somos burgueses”, mas a ruptura estendia-se das palavras aos actos.
Se há discos em que o “dantes é que era” se dissolvem na chuva, Hoje há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos é um deles. Porque não só lhe faltava uma estante para arrumar, como contestava as primeiras horas da madrugada da democracia. “É pena capital/pena que em ti/se escrevam os livros da incultura/que em ti se diga a liberdade/em bocas libertinas”, escrevia António Pinho para a voz de Nuno Rodrigues. “Independentemente de não estarmos conformados com o antigo regime, esperávamos mais do 25 de abril”, constava este último em Os Melhores Álbuns da Música Portuguesa de 1997. “Era uma demarcação dos nossos colegas de esquerda”, lembrava Nuno Rodrigues citado pelo livro. “Não concordamos com esta pseudo-esquerda que está a gerir a nação”.
Palavras ainda com mais força no País Fardado à Força da destemida País: Portugal. A sátira da Banda do Casaco era politizada mas não panfletária. “Nunca tivemos intenção de nos tornarmos budistas ou elementos de partidos políticos (…) Há coisas muito mais importantes que do que determinados doutrinários, doutrinas, religiōes, ou opçōes políticas (…) Gostávamos de estar musicalmente com os pés enterrrados na terra e com as pontas dos dedos a tentar tocar as estrelas”, confirmava Nuno Rodrigues.
Assim era. A viagem entre a tradição e o devir propunha um salto para o desconhecido. Que abriria portas para o baile no bosque dos Trovante e já neste século seria o campo aberto de B Fachada, Diabo na Cruz ou Zarco. Tudo porque, depois do 25 de abril, Nuno Rodrigues mergulhara nas recolhas e na música tradicional “na altura das campanhas de dinamização cultural”, explicava na entrevista ao jornal. “Valha a verdade, eu não dinamizava nada. Queria era que os velhotes me ensinassem as cançōes”. Era um disco profundamente interpretativo, fonético e profético, de leituras plurais e camadas de sentidos, como na citada Geringonça, interpretada por Gabriela Schaaf (a mesma do êxito Homem Muito Brasa, de 79). Denso, intencional e desconcertante. Ácido nas intençōes e jocoso nas provocaçōes.
Para os músicos, era um exercício livre de teste dos limites instrumentais. De laboratório insaciável de ideais por inventar. Uma arquitectura sonora inspirada por congéneres ingleses como os Gentle Giant, Jethro Tull ou Curved Air, com as solas gastas da espera por um novo amanhã português. “Só porque um indivíduo nasceu a falar português, não deve perder a concepção do universo”, assumia Nuno Rodrigues. Só que Portugal era demasiado monocromático para os lápis de cor da Banda do Casaco. A revolução já tinha acontecido, agora faltava cumpri-la.
Hoje há Conquilhas, Amanhã Não Sabemos foi editado em 1977 pela Imavox, e reeditado em CD pela Companhia Nacional de Música de Nuno Rodrigues em 2006. Pode ser (re)descoberto nas plataformas digitais